quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A gente sempre sobrevive . Sobrevivemos nas acrópoles atenienses sem internet, mas envolvidos numa trama peculiar chamada filosofia. Sobrevivemos como escravos babilônios há 2500 anos e mesmo Nabucodonosor, manda chuva na terra da Babilônia, Fidel Castro de antigamente, sobreviveu. Já houve quem foi centurião romano, center-four do XV de Piracicaba ou poeta simbolista e todos eles sobreviveram. Sobreviveram índios e jesuítas. Torturados e torturadores. Lunáticos do Oiapoque e imbecis do Chuí. Sobreviver é imperioso. Sobrevive o impulso sexual na moça virgem. Sobrevive a dor invisível no amputado. A fome no viciado. A loucura nos santos. O cheiro de vida nos peixes envenenados. Tucanos e lulistas, pecuaristas e black blocs, delatores e delatados – todos eles, sem exceção, invictos em vida, profissionais da sobrevivência. Entre a indiferença e a piada pronta, os canalhas passam ao largo da morte. 
Do lado de cá da ilha de solidão tupiniquim, apesar dos safadões e da suruba sertaneja e do cativeiro onde meteram o passado e dos zumbis do centro de Goiânia e do calor infernal, sobreviver é água com açúcar. Porquanto, é possível sobreviver de todas as formas, exceto sem amigos. Os amigos são um alento – sobretudo os que ainda não aterrissaram no Facebook ou já morreram ou desapareceram ad eternum na cortina de fumaça dos bares. Um amigo morto é a prova viva que sobreviver a morte é mais fácil do que parece.
Nessa vidinha, tudo tem jeito, tudo se renova, tudo tem um preço, um fiador e um otário em 10x sem juros; tudo se fode para depois se foder outra vez e finalmente, após uma sequência harmoniosa de fodas kármicas e fodas casuais , os homens e as coisas tropeçam no princípio de tudo e sobrevivem.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Não que a vida perto do mar seja mais fácil. Há engarrafamento na orla de João Pessoa. As mulheres também não amam no Cote D'azur. Perto do mar, os juros do Itaú e a TV e o Rádio e as briguinhas de facebook e os mendigos e a Av. Getúlio Vargas... falam todos o mesmo idioma nacional. Perto do mar também se morre. Perto do mar há os que se lançam indefesos em busca da morte salgada. Parafraseando o outro: a morte é a morte e suas circunstancias, certo? Não é sequer o caso de dizer que a beleza salva. Que a beleza suaviza a manhã e embala a noite. Que a beleza isso ou aquilo – que ela é um santo remédio, pode apostar que sim, mas não é o caso.
Acontece que tenho me esparramado na rede da sala. Como uma criança sem escrúpulos imaginativos, faço de conta que o céu é o mar – de cabeça pra baixo, porém o mar. As raras nuvens de setembro que volitam o planalto central me parecem as ondas espaçadas do calmo oceano goiano que não existe, meu Deus, mas que há de existir, há de existir!
Às vezes meu corpo sonolento faz do barulho do ventilador Arno três rotações o soluço embriagante das águas que se chocam contra o tempo das falésias.
Esporadicamente acendo um cigarro enquanto tomo banho e de olhos bem fechados é a chuva marítima que me invade o peito ensaboado.
Uma vez ou outra ligo para um parente ou amigo natalense e pergunto meio desinteressado:
- Vem cá... Vem cá... Esse barulho aí no fundo... Esse barulho... É do mar?
Sempre, SEMPRE, “esse barulho é do mar, André, é do mar”.

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Escrever uma história, taí minha única ambição. Uma história que comovesse o coração secreto das mulheres. O coração das mulheres é uma trincheira alemã e não se pode descer uma trincheira com tulipas e boas intenções. Uma história mentirosa, irreal, delirante, mas que estivesse próxima o suficiente da vida a ponto de imitá-la. 
Quando a verdade, por puro capricho, atormenta a vida de qualquer artista (por mais bundão o artista), ela é como um quadro de Modigliani: pescoço alongado e olhos vazados, corpo nu e alma arrebatada.
Uma história que fosse minha e não precisasse de mim. Talvez um mito. Quem sabe a lenda de um amor medieval sacaneado pelas circunstâncias de seu tempo. Um amor que nunca aconteceu e jamais acontecerá.
Assim como os homens, as histórias que contamos tem endereço certo: o esquecimento -- única agonia e único consolo.
O esquecimento é a garota que jamais nos abandonará. O esquecimento é a estrada de ferro por onde passam todas as histórias. O esquecimento é uma canção de despedida do Nelson Cavaquinho. Um enterro sem mulatas. Um samba sem adeus.
O esquecimento e a capacidade de contar histórias são as únicas coisas que nos ligam aos deuses.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Devia ser uma noite normal. Uma noite onde o porteiro dorme, o Bonner dá seu “boa noite” e os mendigos engolem o frio das calçadas. Uma noite sem começo, mas com fim. Como se tratava de uma noite normal, também fui a normalidade: Bebi. Fumei. Conversei. Gastei o castelhano e conjurei o francês. Mas o que me atormenta fala o idioma português e está na filosofia dos corpos desconhecidos. 
E em português eu articulo pela última vez na noite essa ausência que fuma dos meus cigarros.


Eu não sei bem o que é. Acho que ressaca. Talvez o sexto dia seguido fumando que só. A caixinha de Marlboro , pequena lembrança da McLaren do Prost. Hiltons alongados como os dedos da última amante russa do último Czar, meu brother Nikolay Alexandrovich. Quem sabe a ausência de uma mulher que não sei bem quem é. Ou a falta dos amigos que conheço  até demais. Possivelmente o ducentésimo segundo aniversário da batalha de Waterloo. Vocês já experimentaram morrer em Waterloo? Nem tentem. É uma merda. Ou o Chet Baker solitário que preenche a sala de jantar onde raramente se janta. (Por falta de diagnóstico ou doença que justifique um diagnóstico, Chet Baker em What's New está fora de cogitação). Pode ter sido o excesso de anúncios de shampoo para caspa ou os congelados da perdigão. Vinho chileno ou Jaggershit, só pode. Não descarto a vitória do Flamengo, que sempre me fode a alma, ou a distância do nordeste, meu oceano e minha cicuta. Há quem diga que a culpa está nas estrelas, mas os cientistas não sabem mais que as cartomantes, e as cartomantes de hoje escorregaram na Tamburello: profissionalizaram-se.
Olha, se eu pudesse e o dinheiro desse, mataria no peito e sairia jogando , mas não é assim que a banda toca, chicos.
Acontece, meu bem. Às vezes é simplesmente inevitável, filho meu. Como proceder? Com a palavra, Manuel Bandeira: "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino."

sábado, 12 de agosto de 2017

A MULHER MAIS BONITA DA CIDADE

A MULHER MAIS BONITA DA CIDADE

1

A mulher mais bonita da cidade. Ela caminhava. Parava. Sentava. Levantava. Voltava a caminhar. Paisagem: a porção seca de areia e o mar quando amanhece e os corais pontiagudos e os caranguejos abilolados – tudo era ela, e eu me apaixonei.
Eu tinha cinco anos. Meu pai subornava meu irmão mais velho com uma nota gorda de dez (isso em 1997) e dia sim, dia não, meu irmão me levava à praia. Ele, meu irmão, também não desgrudava dela, a mulher mais bonita da cidade. Eu era todo ciúmes. Ciúmes do meu irmão que a desejava sem amor, dos picolezeiros, dos gringos e dos peixes que saltavam para vê-la; ciúmes do sol que a assediava sem pudor e ciúmes do vento soprando em seu corpo moreno o áspero sal das falésias.  
Todos a desejavam, mas ela não dava a menor bola. Ela era a indiferença bronzeada.
Vejam: – A beleza é naturalmente indiferente. Assim como o mar não se envaidece ante a prece agônica dos afogados, ela ignorava a própria beleza e a cobiça dos homens.
Ninguém sabia uma vírgula de sua vida, nada, absolutamente nada, a não ser que era a mulher mais bonita da cidade.
Isso bastava.

2

Um toró miserável caía sobre a Praia do Cotovelo.
A praia deserta. Um pescador , sua viagem perdida, meu irmão e eu. E ela, claro, porque ela habitava todas as praias da cidade. Sem ela, a cidade era uma noite fracassada de réveillon. A cerveja acabou, as crianças dormiram e os fogos só fazem barulho e nenhuma luz.
Chovia e ela caminhava. Meu irmão buscou abrigo num quiosque abandonado. Os que não amam fogem da chuva e a chuva não perdoa os que não amam. Esses não herdarão o reino chuvoso dos céus, mas um quiosque abandonado nos confins do inferno. Por sua vez, ela permaneceu lá. Caminhando. O olhar distante divisando a costa remota da África, do outro lado do oceano e do tempo.
O que tanto ela olhava?
De repente, sentou na areia molhada que lhe sugou quadris-coxas-joanetes rumo ao núcleo desconhecido da Terra.
Se vocês não conhecem Natal ou nunca foram à Praia do Cotovelo, atenção: quando chove, toda areia é movediça e toda tristeza é pouca.

3

Em meio à chuva, eu a observava. Maravilhado. Quase às lágrimas. Não chorei porque as crianças só choram de dor ou despeito, e não era dor, tampouco despeito, o que sentia.
Se Galileu Galilei encontrasse a mulher mais bonita da cidade caminhando pela praia achatada, diria: “A Terra é plana”.
Em seguida, acenderia uma fogueira e guardaria em chamas o segredo de sua ciência.

4

Nunca choveu tanto. Meu irmão veio me buscar. Cortesmente, o mandei pentear macaco. Ele não gostou muito da ideia e avançou com aquele olhar animalesco que os adultos lançam quando desafiados por um moleque petulante. (No meu caso, substituam petulância por paixão pela mulher mais bonita da cidade, e dá na mesma).  
– Vá pentear macaco, seu ditador da vida dos outros – repeti uma vez mais e corri, corri, corri como jamais correu o jamaicano Bolt para o recorde mundial. Corri como só uma criança consegue correr. Quando querem, as crianças são mais rápidas que qualquer antílope africano fugindo da morte.
Enfim: corri como nunca e escorreguei como sempre. Foi quando percebi que quanto mais corria, mais me afastava dela.
Apavorado, voltei. Ela não estava mais lá. Ela nunca mais esteve lá. E aquela foi a última vez.

5

A única beleza que não termina em tragédia é aquela que tem consciência de si.
Um vulcão só explode porque ainda não se descobriu vulcão. Se soubesse, confessaria os traumas de sua infância paleolítica no divã rochoso da psicanálise vulcânica.
Os pardais e as gaivotas não se atiram em queda livre. Na existência aeroespacial dos pássaros, não existe suicídio.

6

Estávamos no trapiche da Praia de Pirangi, meu irmão e eu, disputando uma partida de arremesso de pedras ao mar. Era impossível vencê-lo em condições normais, a não ser quando minha pedra era muito grande e a dele muito pequena. Não bastasse a desvantagem física, meu irmão sempre me deixava com as piores pedras.  
Um amigo do meu irmão o avistou e correu até o trapiche. Estava animado, eufórico com a notícia que trazia. O infeliz mal nos alcançou e foi logo abrindo o berreiro:
– Sabe aquela morena? Encontraram ontem. O mar cuspiu. Só reconheceram pela tatuagem. Até agora não apareceu família, nada, porra nenhuma. Esquisito, né? Tão dizendo que se matou. Se jogou no mar, a louca. Bonita daquele jeito, mas sem um pingo na cabeça.  Eu bem que desconfiava, eu bem que desconfiava... Calada daquele jeito, coisa boa não era.

7

Meus amigos se lançam ao mar. São sete e brincam com uma bola de vôlei. O mar está calmo e o sol é o termômetro das ondas. Se a vida não fosse uma besteira, eu brincaria de bola. Se a vida não fosse essa, juro por Deus, eu jogaria bola com meus amigos.
Permaneço sentado exatamente onde ela esteve... pela última vez. É questão de tempo: um dia o mar terá consciência de si. Consciente, se arrependerá. Arrependido, recuará. Recuará até que a cidade do Natal adquira dimensões continentais.
Então, construiremos uma ponte ligando a Praia do Cotovelo à costa da África.
Será a maior ponte da história da humanidade. Algum imbecil batizará com nome de político a maior ponte da história da humanidade, mas popularmente será conhecida como: ESTRADA DOS AFOGADOS.

8

Ninguém jamais desconfiará que ela foi/é a gênese dos mares. O estopim do mundo do futuro. A última musa do Atlântico Nordeste. Aquela que foi engolida pelo mar. Sem família, sem sossego, sem identidade. Apenas ela e a sinfonia imantada das ondas. A mulher mais bonita da cidade.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A primeira morte a gente nunca esquece



Hoje

De repente eu descubro que tudo se trata do velho. Vinte anos ontem da luta Tyson vs. Holyfield. Meu pai era aficionado por boxe, quando ainda nesse mundo havia meu pai e o boxe. Quer dizer, meu pai e o boxe ainda existem, mas os últimos vinte anos aproximaram meu pai e o boxe da morte. Uma aproximação irremissível, porém justa. Meu pai e o boxe se recusaram a fazer parte do séc. XXI. Eles tem – ou devem ter, eu imagino – seus motivos para se refugiaram no passado que os criou e por fatalidade da vida recusou-se a acompanhá-los.



Antes

 O velho passou uma semana falando da luta. No almoço, socava a mesa e dizia:

– O Holyfield não tem chance. Até Jesus foi derrotado uma vez. Duas, impossível. O Holyfield não tem chance.

 O Tyson vinha de uma derrota para o canalha Evander Holyfield. O Tyson era dono de um cartel invejável. O Tyson era o messias que o Deus Muhammad Ali havia prometido ao mundo. Isso o Tyson ainda não sabia, mas a exemplo do verdadeiro messias, ele seria brutalmente assassinado e renegado por aqueles que mais amou. O Pilatos da vez chamava-se Mitch Halpern e usava gravatinha borboleta, à moda dos velhos juízes da WBA. Novamente o Tyson não sabia, mas o dinheiro e o talento são duas mulheres belíssimas que dão para o primeiro cara que encontram.

Até aquela noite, Mike Tyson venceria Aquiles, Spartacus, Joe Lewis, Tarzan, qualquer um. Mike Tyson esmagaria Davi, o rei cruel dos judeus, e nocautearia Golias, o gingantão filisteu que não sabia dançar à la Sonny Liston. Mike Tyson era o que dizia o que tinha a dizer da maneira mais rápida e direta – o Ernest Hemingway dos ringues. Mike Tyson tinha um caso com a eternidade e definitivamente ele não seria preso ou morto por isso. A eternidade o acolheria, assim como o acolheu sempre que calçou as luvas e se deixou consumir pela fúria.



Durante

Quando da luta, o velho acordou meu irmão mais velho, que por sua vez me acordou. O velho fez café e fumou quantos cigarros sua ansiedade exigiu. O velho nos pediu encarecidamente que fizéssemos – meu irmão, eu e Platão, o cachorro da casa – silêncio.

– Esse é o tipo de coisa que a gente assiste em silêncio, vocês entenderam? Vocês estão vendo esses animais que pagaram uma fortuna para assistir a luta nas primeiras cadeiras? Vê como eles gritam e urram? Vê como é ridículo? Só um insensível, um verdadeiro ignorante, é capaz de gritar enquanto uma luta desse tamanho acontece. Onde eles pensam que estão? No Coliseu? Esses animais pensam que o Bill Clinton é o Júlio Cesar, percebe? Eles precisam de uma aula de como fazer silêncio. Se eu soubesse inglês, eu até poderia ensiná-los a ficar em silêncio.


A Luta

A luta começou e o Tyson mais parecia uma múmia. Apático, lento, desgovernado, inábil etc. etc. 

O primeiro round se foi e o Tyson continuou parado, incapaz sequer de ultrapassar a linha de cintura. Meu pai e meu irmão estavam embasbacados – silenciosamente embasbacados. Era um milagre às avessas. Um milagre do demônio contra as forças do bem, contra o Tyson. O segundo round veio e Evander Holyfield acertou um direto na barriga do Tyson. Tyson avançou e caiu nos braços do Holyfield. O canalha, então, passou a deferir cabeçadas na testa do Tyson. Mitch Halpern, nosso Pôncio Pilatos, lavou as mãos.

Quando o grande Mike Tyson abocanhou a orelha do canalha Evander Holyfield, meu pai rompeu seu voto de silêncio e praguejou como um daqueles "animais que pensam que o Bill Clinton é o Júlio Cesar". Meu pai havia apostado uma grana na vitória do Tyson.



Depois

Meu pai se refugiou no quintal. Não havia sentido que um lutador do quilate do Tyson fosse capaz de tal. O velho estava inconformado. Inutilmente, meu irmão tentou consolá-lo:

– Calma, pai, o Tyson vai derrotar o Holyfield um dia.

– Não fale besteira, garoto. Você ainda não conhece a vida. Um dia você vai aprender que um lutador como o Tyson é incapaz de lidar com a derrota. Isso que você acabou de assistir foi a morte de um homem. Vá se acostumado. Eles morrem todos os dias e dê graças aos céus que eles morrem.

Meu irmão e eu entramos. Fazia um frio insuportável e nós precisávamos dormir. Mesmo quando um homem morre, mesmo quando alguém tem a orelha arrancada, as crianças precisam dormir. E nós dormimos.