tag:blogger.com,1999:blog-86329468782502148122024-03-18T20:11:27.511-07:00Feliz 1945André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.comBlogger30125tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-79771854811248473132020-11-19T18:45:00.001-08:002020-11-19T19:40:40.014-08:00Palavrear<div><div><br></div><div>Fui à Palavrear. Precisava encontrar um velho amigo. Um velho amigo é uma caixa de coisas enferrujadas. O passado, as estórias, os conhecidos em comum que o tempo arrastou para o deserto do esquecimento. </div><div><br></div><div>Na vida, montamos algumas trincheiras. Ou isso ou definhamos no campo aberto das desilusões. A Palavrear é uma trincheira. A minha trincheira. Uma trincheira povoada de generais: Borges, Jorge Amado, Hemingway, Bandeira, Whitman, Lorca, Marquez, Drummond, O velho Braga... </div><div><br></div><div>Alguns lugares nos protegem como se estivéssemos no útero materno. Pequenas cavernas onde nos abrigamos da chuva. Protegidos, descansamos da ruína - pessoal e coletiva. Esquecemos o infortúnio individual e o infortúnio de todas as gentes. Porém, uma livraria não é apenas uma trincheira. Uma livraria é uma igreja. Para cada poeta, um cigarro aceso. Em cada verso uma oração. O paraíso de Milton. Os labirintos de Borges. Os castelos de Celine. Deuses e filósofos no mesmo banquete de ossos. </div><div><br></div><div>Certa vez, após brigar com minha esposa, saí de casa - ou fui expulso? Já não lembro mais. O fato é que fiz as malas e fui embora. Mas não havia para onde ir. Eu vivia na Rua 18, entre o Lyceu e o nada. No calor da indecisão, peguei as malas e me mandei pra Palavrear. Do meu apartamento à Palavrear, cinco minutos de caminhada. Lá, entre os livros, eu descobriria pra onde ir. Lá, à sombra dos generais, eu encontraria a resposta. Após cinco horas flanando pela livraria, lendo para esquecer, esquecendo para viver, tudo acabou bem. Voltei pra casa. Minha amada estava a minha espera. Mas a Palavrear foi meu porto seguro. Agora imagine a cena: um imbecil com uma camisa florida, após brigar com a esposa, arrastando duas malas pelas orelhas, adentrando a livraria como um retirante da própria solidão. </div><div><br></div><div>A Palavrear é uma ilha de esperança e pureza. Entre o Leste Universitário dos feridos e o Setor Central dos fantasmas. </div></div><div><br></div>André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-12682012314042249822018-11-25T22:58:00.002-08:002018-12-02T12:08:26.931-08:00<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: 27.0pt; line-height: 115%;">Goiânia Nordestina<o:p></o:p></span></b></div>
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<br /></div>
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<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Há uma ilha de afeto no peito do nordestino que parte. O corpo
do nordestino é um arquipélago azul. Ilhas que flutuam num oceano de luzes e
sangue. Sua memória, uma península de saudade. A maresia encrustada nos dentes.
O suor salgado que escorre em ondas. Mas há uma ilha de afeto no coração do
nordestino. A solidão é um náufrago e a ilha é seu reino. Reino de desolação.
Reino de antigas serestas que o tempo silenciou. Reino de morenas submersas e
ruivas flutuantes. Reino de um só homem e um só rei. O rei solidão não tem
herdeiros. O rei solidão mata a sede com água da chuva. Carrega o frio da noite
tatuado na pele descascada de sol. Quando bate a fome, uma criança cheia de
caprichos, a solidão a engana com estórias de um continente distante. A fome
simplesmente adormece e sonha acarajés, buchadas, tapiocas e lagostas aladas. <o:p></o:p></span></div>
</div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">*** <o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O nordestino é um personagem esmagado na paisagem colorida
de um pintor. Paralisado na moldura do tempo. Portinari ou Deus, tanto faz. O nordestino é um cubo mutilado de
Picasso. O nordestino é uma tormenta de Turner; uma mulata de DiCavalcanti e um
monstro aberração de Tarsila. <o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">***<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O poeta nos alertou e nós, os nordestinos, esquecemos: “O
Nordeste é uma ficção, o nordeste nunca houve.” <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">***<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O nordestino que parte não é o mesmo que chega. A viagem,
por mais fuleira, exerce sobre o nordestino um fascínio quase infantil. A
euforia dos ingênuos. A estrada é a Disney do retirante. Frentistas como
Mickeys adormecidos. Um vira-lata de três pernas lembra o Pluto. O banco duro
do ônibus, uma grande montanha russa – escalando cordilheiras e no trotando no
espinhaço negro do asfalto. Não há
comida de mãe que chegue aos pés do PF, frio e sem sabor, do Bar do Marcão. A
paisagem sorri para o nordestino. A paisagem é um canastrão e a estrada é um
filme. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Onde termina a BR-101, começa a eternidade. Onde acaba a eternidade, começa o Sul do país.
<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">*** <o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Às vezes o nordeste e eu nos encontramos. É estranho encontrá-lo
assim de repente. Ele aparece no refrão de uma canção da Billy Holiday que toca
na casa de alguém. Aparece na música de uma palavra e no rótulo das cervejas.
Às vezes o nordeste é um garçom chamado Fábio. Mãos ágeis para fatiar a picanha
da churrascaria gaúcha. Fábio diz desse jeitinho “Meu sonho sempre foi
trabalhar com picanha, moço. Desde menino eu admiro picanha e hoje realizei o
sonho. É bom viver o sonho, né, moço?” Fabio nasceu em Imperatriz-MA, e lá
mesmo nunca topou um Imperador, um Príncipe Regente, um Sarney que fosse, nada;
Imperatriz-MA, acho, é uma cidade só de súditos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Não creio que meu conterrâneo Fabio seja pobre de ambição.
Acontece que há certa nobreza e abundância de vida na simplicidade que
Imperadores, Coronéis e Sarneys embalsamados jamais entenderão. <o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">*** <o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A simplicidade é a própria lucidez. Não se chega à
liberdade, sem antes passar pela simplicidade. Há uma cerimônia de futilidade e
demência. A futilidade é um entorpecente perigoso. Demência é refresco. Mas há
drogados por toda parte. Eles querem coisas. Eles estão sempre atrás de algo.
Carros, iates, mulheres, nelores, iphones, empregos, banheiras, igrejas, doce
de leite, jornais, políticos, esperança, dentistas, promoções, múmias carbonizadas,
um cigarro picado à meia noite na última distribuidora do Setor Aeroporto e
heróis sem carisma. Eles estão loucos o suficiente para não sacar absolutamente
nada. <o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">*** <o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Neuza é baiana. Ela não se considera baiana. Mudou com a mãe
há trinta anos. O objetivo era Brasília, mas o destino quis Goiânia. O mundo
era outro, apesar de ser o mesmo. Neuza tem quarenta e cinco anos. Trabalha na
limpeza de um shopping. Neuza é aquela mulher que recolhe as bandejas e varre
os corredores. O sotaque baiano se perdeu ou foi esquecido. Neuza usa o
uniforme da equipe de limpeza. Um uniforme feito para torná-la invisível. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">–João Nogueira tem uma musica chamada Neuza. É uma canção
muito bonita, Neuza. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">– Não sou muito de música. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A noite se fez e Neuza ainda não viu a cor noite. O teto
cheio de coisas modernas do shopping impede que Neuza saiba que é noite. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">– A gente passa tanto tempo aqui dentro, que quando vê, o
tempo passou e já é noite.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A noite é tão natural quanto o sotaque perdido de Neuza. Diferente
das liquidações, a noite é de verdade. É noite em Goiânia. É noite na Bahia
irrecuperável de Neuza. A noite é a mesma no Brasil, embora o Brasil não seja o
mesmo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Beijo-lhe a mão. Neuza não está acostumada a ter a mão beijada.
Ela não sabe, mas beijar mão de baiana “chama a sorte”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">– Você é de onde?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">– Natal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">– Então a partir de hoje beijar mão de <i>natalino</i> também é sorte. Posso?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">– Por favor, Neuza.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
</div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Ela me beija a mão. Nos despedimos, cada qual com sua
fortuna e lá no fundo, ela sabe, e eu sei, que a noite se fez. A sorte nos
pegou de jeito. </span><o:p></o:p></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-77347773365003258152018-02-14T17:03:00.000-08:002020-03-23T20:12:02.046-07:00<div class="MsoNormal">
Agora que a chuva voltou, prometo mudar completamente. Mudar
de vida, de penteado, de marca de cigarro e até de religião. Prometo esquecer o
mal que me fizeram no tempo que não chovia em Goiânia. Prometo esquecer o sol incansável
em sua rotina de agressão. Prometo amar mais a chuva que a preguiça. Mais os
mendigos que os santos. Pra quando a chuva for embora, prometo cuidar de ti,
Goiânia, como só um filho cuidaria da mãe louca que agoniza marchando pra morte. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
*** <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
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</div>
<div class="MsoNormal">
Porém, a chuva caiu e não foi em vão. Agora que a esperança
se fez líquida, desde já e até segunda ordem, volto a acreditar em Baudeleire,
Rimbaud e no cavaquinho de Waldir Azevedo em Pedacinhos do Céu. Uma vez mais,
serei o ingênuo. Ingenuamente, serei atropelado. Perdoarei as piores baixarias
e pronunciarei baixinho o nome de Deus em vão. Ensopado dos pés a cabeça,
cantarei uma velha canção chuvosa. Goiânia & eu seremos aqueles dois de
sorriso fácil atravessando sem pressa o corredor polonês das ruas alagadas. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
</div>
<div class="MsoNormal">
É bom que tenha voltado a chover. Foram dias difíceis. Também
se a chuva não voltasse, não secariam apenas os açudes e não só o João Leite
morreria de inanição aquática, mas o câncer da chuva apodreceria o
coração dos homens como um peixe encalhado na lama dura e esquartejada de um riachinho assassinado. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A ausência da chuva quase levou à loucura a garota
que o namorado abandonou. Por muito pouco o calor não trucidou multidões
de adolescentes que desaprenderam a chorar. A ausência da
chuva pôs termo a mil cento e cinquenta e oito casamentos. Vocês esqueceram, mas quando não chovia o mundo era outro e as pessoas andavam meio
esquisitas. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Nos homens a melancolia e nas
mulheres a tristeza. Nos homens o tédio e nas mulheres o peso do sexo. Nos
homens as mãos inchadas e nas mulheres os lábios rachados. Tudo porque não
chovia. Mas gora que a chuva voltou, os casais que se separaram, súbito, descobriram o peso da distância. A garota que quase enlouqueceu
recobrou a razão. Mesmo os adolescentes, que da vida sabem quase nada,
reaprenderam a chorar e não me perguntem como. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br />
***<br />
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
Um Buda gordo. Um orixá valente. Um messias sacrificado. Em
nome deles e de todos os profetas mundanos, prometi que mudaria. Depois da chuva, a mudança. Promessa de chuva é dívida. E ela apareceu. Sem aviso prévio nem nada, saltou das nuvens, tocou a campainha e entrou. Contudo, atenção: recebam a chuva com elegância. Preparem um banquete. Ofereçam um banho quente, sabonete, toalha branca, cama asseada, essas coisas. Afinal, a chuva em Goiânia é o filho que retornou ao velho lar dos pais em busca do impreterível perdão. Afinal, que pai ou mãe negaria o perdão
ao filho? Afinal, que filho pode passar sem o perdão dos pais?<br />
<br />
A chuva voltou e dizem os meteorologistas, cartomantes do destino da chuva, que
ela está só de passagem. Ninguém sabe aonde ela vai. Ninguém sabe quando ela volta. Porém, ela está entre nós. E não é todo dia. <o:p></o:p></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-60987671677256481622017-10-11T11:48:00.001-07:002018-03-06T00:37:52.848-08:00<div dir="ltr">
A gente sempre sobrevive . Sobrevivemos nas acrópoles atenienses sem internet, mas envolvidos numa trama peculiar chamada filosofia. Sobrevivemos como escravos babilônios há 2500 anos e mesmo Nabucodonosor, manda chuva na terra da Babilônia, Fidel Castro de antigamente, sobreviveu. Já houve quem foi centurião romano, center-four do XV de Piracicaba ou poeta simbolista e todos eles sobreviveram. Sobreviveram índios e jesuítas. Torturados e torturadores. Lunáticos do Oiapoque e imbecis do Chuí. Sobreviver é imperioso. Sobrevive o impulso sexual na moça virgem. Sobrevive a dor invisível no amputado. A fome no viciado. A loucura nos santos. O cheiro de vida nos peixes envenenados. Tucanos e lulistas, pecuaristas e black blocs, delatores e delatados – todos eles, sem exceção, invictos em vida, profissionais da sobrevivência. Entre a indiferença e a piada pronta, os canalhas passam ao largo da morte. <br>
Do lado de cá da ilha de solidão tupiniquim, apesar dos safadões e da suruba sertaneja e do cativeiro onde meteram o passado e dos zumbis do centro de Goiânia e do calor infernal, sobreviver é água com açúcar. Porquanto, é possível sobreviver de todas as formas, exceto sem amigos. Os amigos são um alento – sobretudo os que ainda não aterrissaram no Facebook ou já morreram ou desapareceram ad eternum na cortina de fumaça dos bares. Um amigo morto é a prova viva que sobreviver a morte é mais fácil do que parece. <br>
Nessa vidinha, tudo tem jeito, tudo se renova, tudo tem um preço, um fiador e um otário em 10x sem juros; tudo se fode para depois se foder outra vez e finalmente, após uma sequência harmoniosa de fodas kármicas e fodas casuais , os homens e as coisas tropeçam no princípio de tudo e sobrevivem.</div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-56186365701814959282017-09-12T14:55:00.001-07:002018-03-04T23:14:48.004-08:00<div class="MsoNormal">
<div class="" data-block="true" data-editor="2u3j3" data-offset-key="7i5at-0-0" style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; white-space: pre-wrap;">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="7i5at-0-0" style="direction: ltr; font-family: inherit; position: relative;">
<span data-offset-key="7i5at-0-0" style="font-family: inherit;">Não que a vida perto do mar seja mais fácil. Há engarrafamento na orla de João Pessoa. As mulheres também não amam no Cote D'azur. Perto do mar, os juros do Itaú e a TV e o Rádio e as briguinhas de facebook e os mendigos e a Av. Getúlio Vargas... falam todos o mesmo idioma nacional. Perto do mar também se morre. Perto do mar há os que se lançam indefesos em busca da morte salgada. Parafraseando o outro: a morte é a morte e suas circunstancias, certo? Não é sequer o caso de dizer que a beleza salva. Que a beleza suaviza a manhã e embala a noite. Que a beleza isso ou aquilo – que ela é um santo remédio, pode apostar que sim, mas não é o caso. </span></div>
</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="2u3j3" data-offset-key="d1hjf-0-0" style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; white-space: pre-wrap;">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="d1hjf-0-0" style="direction: ltr; font-family: inherit; position: relative;">
<span data-offset-key="d1hjf-0-0" style="font-family: inherit;">Acontece que tenho me esparramado na rede da sala. Como uma criança sem escrúpulos imaginativos, faço de conta que o céu é o mar – de cabeça pra baixo, porém o mar. As raras nuvens de setembro que volitam o planalto central me parecem as ondas espaçadas do calmo oceano goiano que não existe, meu Deus, mas que há de existir, há de existir! </span></div>
</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="2u3j3" data-offset-key="edmkm-0-0" style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; white-space: pre-wrap;">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="edmkm-0-0" style="direction: ltr; font-family: inherit; position: relative;">
<span data-offset-key="edmkm-0-0" style="font-family: inherit;">Às vezes meu corpo sonolento faz do barulho do ventilador Arno três rotações o soluço embriagante das águas que se chocam contra o tempo das falésias. </span></div>
</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="2u3j3" data-offset-key="915f0-0-0" style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; white-space: pre-wrap;">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="915f0-0-0" style="direction: ltr; font-family: inherit; position: relative;">
<span data-offset-key="915f0-0-0" style="font-family: inherit;">Esporadicamente acendo um cigarro enquanto tomo banho e de olhos bem fechados é a chuva marítima que me invade o peito ensaboado. </span></div>
</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="2u3j3" data-offset-key="fdgps-0-0" style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; white-space: pre-wrap;">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="fdgps-0-0" style="direction: ltr; font-family: inherit; position: relative;">
<span data-offset-key="fdgps-0-0" style="font-family: inherit;">Uma vez ou outra ligo para um parente ou amigo natalense e pergunto meio desinteressado: </span></div>
</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="2u3j3" data-offset-key="85ofl-0-0" style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; white-space: pre-wrap;">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="85ofl-0-0" style="direction: ltr; font-family: inherit; position: relative;">
<span data-offset-key="85ofl-0-0" style="font-family: inherit;">- Vem cá... Vem cá... Esse barulho aí no fundo... Esse barulho... É do mar? </span></div>
</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="2u3j3" data-offset-key="fh3mt-0-0" style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; white-space: pre-wrap;">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="fh3mt-0-0" style="direction: ltr; font-family: inherit; position: relative;">
<span data-offset-key="fh3mt-0-0" style="font-family: inherit;">Sempre, SEMPRE, “esse barulho é do mar, André, é do mar”. </span></div>
</div>
</div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-81359805808562913802017-08-31T13:27:00.000-07:002018-03-04T22:49:50.997-08:00<div class="MsoNormal" style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; line-height: normal; margin-bottom: 0cm;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><span style="background-color: white; color: #1d2129;">Escrever uma história, taí minha única ambição. Uma história que comovesse o coração</span><span style="color: #1d2129;"><span style="background-color: white;"> s</span></span><span style="background-color: white; color: #1d2129;">ecreto das mulheres.</span><span style="background-color: white; color: #1d2129;"> O coração das mulheres é</span><span style="background-color: white; color: #1d2129;"> uma trincheira alemã e não se pode descer uma trincheira com tulipas e boas intenções. Uma história mentirosa, irreal, delirante, mas que estivesse próxima o suficiente da vida a ponto de imitá-la. </span></span></div>
<div style="background-color: white;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: #1d2129; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Quando a verdade, por puro capricho, atormenta a vida de qualquer artista (por mais bundão o artista), ela é</span><span class="text_exposed_show" style="color: #1d2129; display: inline; font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"> como um quadro de Modigliani: pescoço alongado e olhos vazados, corpo nu e alma arrebatada.</span></div>
<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><div style="text-align: justify;">
<span style="color: #1d2129;">Uma história que fosse minha e não precisasse de mim. Talvez um mito. Quem sabe a lenda de um amor medieval sacaneado pelas circunstâncias de seu tempo. Um amor que nunca aconteceu e jamais acontecerá.</span></div>
<span class="text_exposed_show" style="color: #1d2129; display: inline;"><div style="text-align: justify;">
Assim como os homens, as histórias que contamos tem endereço certo: o esquecimento -- única agonia e único consolo.</div>
<div style="text-align: justify;">
O esquecimento é a garota que jamais nos abandonará. O esquecimento é a estrada de ferro por onde passam todas as histórias. O esquecimento é uma canção de despedida do Nelson Cavaquinho. Um enterro sem mulatas. Um samba sem adeus.</div>
<div style="text-align: justify;">
O esquecimento e a capacidade de contar histórias são as únicas coisas que nos ligam aos deuses.</div>
</span></span></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-11431831893040889322017-08-24T21:38:00.000-07:002018-02-20T17:29:48.069-08:00<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="background-color: white; color: #1d2129;">Devia ser uma noite normal. Uma noite onde o porteiro dorme, o Bonner dá seu “boa noite” e os mendigos engolem o frio das calçadas. Uma noite sem começo, mas com fim. Como se tratava de uma noite normal, também fui a normalidade: Bebi. Fumei. Conversei. Gastei o castelhano e conjurei o francês. Mas o que me atormenta fala o idioma português e está na filosofia dos corpos desconhecidos. </span><br style="background-color: white; color: #1d2129;" /><span style="background-color: white; color: #1d2129;">E em português eu articulo pela última vez na noite essa ausência que fuma dos meus cigarros.</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<br /></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-42676911919503132972017-08-24T07:41:00.001-07:002017-08-24T07:41:05.095-07:00<p dir="ltr">Eu não sei bem o que é. Acho que ressaca. Talvez o sexto dia seguido fumando que só. A caixinha de Marlboro , pequena lembrança da McLaren do Prost. Hiltons alongados como os dedos da última amante russa do último Czar, meu brother Nikolay Alexandrovich. Quem sabe a ausência de uma mulher que não sei bem quem é. Ou a falta dos amigos que conheço até demais. Possivelmente o ducentésimo segundo aniversário da batalha de Waterloo. Vocês já experimentaram morrer em Waterloo? Nem tentem. É uma merda. Ou o Chet Baker solitário que preenche a sala de jantar onde raramente se janta. (Por falta de diagnóstico ou doença que justifique um diagnóstico, Chet Baker em What's New está fora de cogitação). Pode ter sido o excesso de anúncios de shampoo para caspa ou os congelados da perdigão. Vinho chileno ou Jaggershit, só pode. Não descarto a vitória do Flamengo, que sempre me fode a alma, ou a distância do nordeste, meu oceano e minha cicuta. Há quem diga que a culpa está nas estrelas, mas os cientistas não sabem mais que as cartomantes, e as cartomantes de hoje escorregaram na Tamburello: profissionalizaram-se.<br>
Olha, se eu pudesse e o dinheiro desse, mataria no peito e sairia jogando , mas não é assim que a banda toca, chicos. <br>
Acontece, meu bem. Às vezes é simplesmente inevitável, filho meu. Como proceder? Com a palavra, Manuel Bandeira: "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino."</p>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-76656928807102499412017-08-12T19:34:00.001-07:002017-08-13T11:02:18.895-07:00<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal">
<b>A MULHER MAIS BONITA
DA CIDADE<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal">
<b>A MULHER MAIS BONITA
DA CIDADE<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>1<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A mulher mais bonita da cidade. Ela caminhava. Parava.
Sentava. Levantava. Voltava a caminhar. Paisagem: a porção seca de areia e o
mar quando amanhece e os corais pontiagudos e os caranguejos abilolados – tudo
era ela, e eu me apaixonei. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Eu tinha cinco anos. Meu pai subornava meu irmão mais velho com
uma nota gorda de dez (isso em 1997) e dia sim, dia não, meu irmão me levava à
praia. Ele, meu irmão, também não desgrudava dela, a mulher mais bonita da cidade.
Eu era todo ciúmes. Ciúmes do meu irmão que a desejava sem amor, dos
picolezeiros, dos gringos e dos peixes que saltavam para vê-la; ciúmes do sol que
a assediava sem pudor e ciúmes do vento soprando em seu corpo moreno o áspero
sal das falésias. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Todos a desejavam, mas ela não dava a menor bola. Ela era a
indiferença bronzeada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Vejam: – A beleza é naturalmente indiferente. Assim como o
mar não se envaidece ante a prece agônica dos afogados, ela ignorava a própria beleza
e a cobiça dos homens. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Ninguém sabia uma vírgula de sua vida, nada, absolutamente
nada, a não ser que era a mulher mais bonita da cidade. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Isso bastava. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>2 <o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Um toró miserável caía sobre a Praia do Cotovelo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
A praia deserta. Um pescador , sua viagem perdida, meu irmão
e eu. E ela, claro, porque ela habitava todas as praias da cidade. Sem ela, a
cidade era uma noite fracassada de réveillon. A cerveja acabou, as crianças
dormiram e os fogos só fazem barulho e nenhuma luz. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Chovia e ela caminhava. Meu irmão buscou abrigo num quiosque
abandonado. Os que não amam fogem da chuva e a chuva não perdoa os que não
amam. Esses não herdarão o reino chuvoso dos céus, mas um quiosque abandonado
nos confins do inferno. Por sua vez, ela permaneceu lá. Caminhando. O olhar
distante divisando a costa remota da África, do outro lado do oceano e do tempo.
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
O que tanto ela olhava?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
De repente, sentou na areia molhada que lhe sugou
quadris-coxas-joanetes rumo ao núcleo desconhecido da Terra. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Se vocês não conhecem Natal ou nunca foram à Praia do
Cotovelo, atenção: quando chove, toda areia é movediça e toda tristeza é pouca.
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>3 <o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Em meio à chuva, eu a observava. Maravilhado. Quase às
lágrimas. Não chorei porque as crianças só choram de dor ou despeito, e não era
dor, tampouco despeito, o que sentia. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Se Galileu Galilei encontrasse a mulher mais bonita da
cidade caminhando pela praia achatada, diria: “A Terra é plana”. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Em seguida, acenderia uma fogueira e guardaria em chamas o
segredo de sua ciência. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>4<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Nunca choveu tanto. Meu irmão veio me buscar. Cortesmente, o
mandei pentear macaco. Ele não gostou muito da ideia e avançou com aquele olhar
animalesco que os adultos lançam quando desafiados por um moleque petulante.
(No meu caso, substituam petulância por paixão pela mulher mais bonita da
cidade, e dá na mesma). <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
– Vá pentear macaco, seu ditador da vida dos outros – repeti
uma vez mais e corri, corri, corri como jamais correu o jamaicano Bolt para o
recorde mundial. Corri como só uma criança consegue correr. Quando querem, as
crianças são mais rápidas que qualquer antílope africano fugindo da morte. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Enfim: corri como nunca e escorreguei como sempre. Foi
quando percebi que quanto mais corria, mais me afastava dela. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Apavorado, voltei. Ela não estava mais lá. Ela nunca mais
esteve lá. E aquela foi a última vez.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>5<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A única beleza que não termina em tragédia é aquela que tem
consciência de si. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Um vulcão só explode porque ainda não se descobriu vulcão. Se
soubesse, confessaria os traumas de sua infância paleolítica no divã rochoso da
psicanálise vulcânica. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Os pardais e as gaivotas não se atiram em queda livre. Na
existência aeroespacial dos pássaros, não existe suicídio. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>6<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Estávamos no trapiche da Praia de Pirangi, meu irmão e eu,
disputando uma partida de arremesso de pedras ao mar. Era impossível vencê-lo
em condições normais, a não ser quando minha pedra era muito grande e a dele
muito pequena. Não bastasse a desvantagem física, meu irmão sempre me deixava
com as piores pedras. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Um amigo do meu irmão o avistou e correu até o trapiche. Estava
animado, eufórico com a notícia que trazia. O infeliz mal nos alcançou e foi
logo abrindo o berreiro: <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
– Sabe aquela morena? Encontraram ontem. O mar cuspiu. Só
reconheceram pela tatuagem. Até agora não apareceu família, nada, porra nenhuma.
Esquisito, né? Tão dizendo que se matou. Se jogou no mar, a louca. Bonita
daquele jeito, mas sem um pingo na cabeça. Eu bem que desconfiava, eu bem que
desconfiava... Calada daquele jeito, coisa boa não era. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>7<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Meus amigos se lançam ao mar. São sete e brincam com uma
bola de vôlei. O mar está calmo e o sol é o termômetro das ondas. Se a vida não
fosse uma besteira, eu brincaria de bola. Se a vida não fosse essa, juro por
Deus, eu jogaria bola com meus amigos. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Permaneço sentado exatamente onde ela esteve... pela última
vez. É questão de tempo: um dia o mar terá consciência de si. Consciente, se arrependerá.
Arrependido, recuará. Recuará até que a cidade do Natal adquira dimensões
continentais. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Então, construiremos uma ponte ligando a Praia do Cotovelo à
costa da África. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Será a maior ponte da história da humanidade. Algum imbecil
batizará com nome de político a maior ponte da história da humanidade, mas
popularmente será conhecida como: ESTRADA DOS AFOGADOS. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>8<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
Ninguém jamais desconfiará que ela foi/é a gênese dos mares.
O estopim do mundo do futuro. A última musa do Atlântico Nordeste. Aquela que
foi engolida pelo mar. Sem família, sem sossego, sem identidade. Apenas ela e a
sinfonia imantada das ondas. A mulher mais bonita da cidade.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
</div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-65462336241163683032017-06-29T11:44:00.001-07:002018-02-18T20:00:39.965-08:00<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 13.5pt;">A primeira morte a gente nunca esquece<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<b>Hoje<o:p></o:p></b></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
De repente eu descubro que tudo se
trata do velho. Vinte anos ontem da luta Tyson vs. Holyfield. Meu pai era
aficionado por boxe, quando ainda nesse mundo havia meu pai e o boxe. Quer
dizer, meu pai e o boxe ainda existem, mas os últimos vinte anos aproximaram
meu pai e o boxe da morte. Uma aproximação irremissível, porém justa. Meu pai e
o boxe se recusaram a fazer parte do séc. XXI. Eles tem – ou devem ter, eu imagino
– seus motivos para se refugiaram no passado que os criou e por fatalidade da
vida recusou-se a acompanhá-los. <o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<b>Antes<o:p></o:p></b></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
O velho passou uma semana
falando da luta. No almoço, socava a mesa e dizia:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
– O Holyfield não tem chance. Até
Jesus foi derrotado uma vez. Duas, impossível. O Holyfield não tem chance.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
O Tyson vinha de uma derrota
para o canalha Evander Holyfield. O Tyson era dono de um cartel invejável. O
Tyson era o messias que o Deus Muhammad Ali havia prometido ao mundo. Isso o
Tyson ainda não sabia, mas a exemplo do verdadeiro messias, ele seria
brutalmente assassinado e renegado por aqueles que mais amou. O Pilatos da vez
chamava-se Mitch Halpern e usava gravatinha borboleta, à moda dos velhos juízes
da WBA. Novamente o Tyson não sabia, mas o dinheiro e o talento são duas
mulheres belíssimas que dão para o primeiro cara que encontram. <o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
Até aquela noite, Mike Tyson
venceria Aquiles, Spartacus, Joe Lewis, Tarzan, qualquer um. Mike Tyson
esmagaria Davi, o rei cruel dos judeus, e nocautearia Golias, o gingantão filisteu
que não sabia dançar à la Sonny Liston. Mike Tyson era o que dizia o que tinha
a dizer da maneira mais rápida e direta – o Ernest Hemingway dos ringues. Mike
Tyson tinha um caso com a eternidade e definitivamente ele não seria preso ou
morto por isso. A eternidade o acolheria, assim como o acolheu sempre que
calçou as luvas e se deixou consumir pela fúria.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<b>Durante<o:p></o:p></b></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
Quando da luta, o velho acordou meu
irmão mais velho, que por sua vez me acordou. O velho fez café e fumou quantos
cigarros sua ansiedade exigiu. O velho nos pediu encarecidamente que fizéssemos
– meu irmão, eu e Platão, o cachorro da casa – silêncio.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
– Esse é o tipo de coisa que a
gente assiste em silêncio, vocês entenderam? Vocês estão vendo esses animais
que pagaram uma fortuna para assistir a luta nas primeiras cadeiras? Vê como
eles gritam e urram? Vê como é ridículo? Só um insensível, um verdadeiro
ignorante, é capaz de gritar enquanto uma luta desse tamanho acontece. Onde eles
pensam que estão? No Coliseu? Esses animais pensam que o Bill Clinton é o Júlio
Cesar, percebe? Eles precisam de uma aula de como fazer silêncio. Se eu
soubesse inglês, eu até poderia ensiná-los a ficar em silêncio.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<b>A Luta<o:p></o:p></b></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
A
luta começou e o Tyson mais parecia uma múmia. Apático, lento, desgovernado,
inábil etc. etc. <o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br />
O primeiro round se foi e o Tyson continuou parado, incapaz sequer de
ultrapassar a linha de cintura. Meu pai e meu irmão estavam embasbacados – silenciosamente embasbacados. Era um
milagre às avessas. Um milagre do demônio contra as forças do bem, contra o
Tyson. O segundo round veio e Evander Holyfield acertou um direto na barriga do
Tyson. Tyson avançou e caiu nos braços do Holyfield. O canalha, então, passou a
deferir cabeçadas na testa do Tyson. Mitch Halpern, nosso Pôncio Pilatos, lavou
as mãos.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br />
Quando o grande Mike Tyson abocanhou a orelha do canalha Evander Holyfield,
meu pai rompeu seu voto de silêncio e praguejou como um daqueles "animais
que pensam que o Bill Clinton é o Júlio Cesar". Meu pai havia apostado uma
grana na vitória do Tyson.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<b>Depois<o:p></o:p></b></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
Meu pai se refugiou no quintal. Não
havia sentido que um lutador do quilate do Tyson fosse capaz de tal. O velho
estava inconformado. Inutilmente, meu irmão tentou consolá-lo:<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
– Calma, pai, o Tyson vai derrotar
o Holyfield um dia.<o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
– Não fale besteira, garoto. Você
ainda não conhece a vida. Um dia você vai aprender que um lutador como o Tyson
é incapaz de lidar com a derrota. Isso que você acabou de assistir foi a morte
de um homem. Vá se acostumado. Eles morrem todos os dias e dê graças aos céus
que eles morrem. <o:p></o:p></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
Meu irmão e eu entramos. Fazia um
frio insuportável e nós precisávamos dormir. Mesmo quando um homem morre, mesmo
quando alguém tem a orelha arrancada, as crianças precisam dormir. E nós
dormimos.<o:p></o:p></div>
<br />
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-84977507830234704432016-09-20T14:14:00.001-07:002016-11-06T12:55:43.484-08:00<span style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: "helvetica" , "arial" , sans-serif; font-size: 14px;">Ela sorriu como um animal suado dentro da noite. Regou com vinho o cansaço do corpo. Trouxe-me o cigarro consumido pela metade. Apoiou-se no parapeito da janela e como uma estrela esquecida do rádio murmurou uma canção doce e imperceptível. Ligou a TV. Desligou a TV. O mundo, outra vez, dispensável e colorido. Disse "agora eu preciso de música e creio que você também", e a música se fez. De joelhos, pronunciou sua oração libidinosa e repetitiva. Depois de tudo, seu corpo amol</span><span class="text_exposed_show" style="background-color: white; color: #1d2129; display: inline; font-family: "helvetica" , "arial" , sans-serif; font-size: 14px;">ecido de animal resgatou a pureza dos anjos que só veem os loucos e os poetas. Sonolenta, dançou. Quando saiu o sol da masmorra noturna de poeira e calor, pediu-me as horas. Rapidamente, abandonou o universo finito do quarto e voltou com suco, pão e o jornal mal escrito que ninguém mais lê, exceto o homem velho e insignificante que há em mim. "Preciso dormir", ela disse. "Durma", eu respondi, e como se seu espirito se desprendesse do corpo para percorrer solitário um caminho de alucinógena felicidade, ela dormiu.<br />Agora sou eu o animal e disputo com a insônia a possibilidade do sono, do sonho e da felicidade que não existe, nunca existiu, e que nós grotescamente despertamos em sonho. É uma luta vil, e a insônia me vence. Permaneço acordado... e escrevo.</span>André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-29164086318956484002016-08-21T14:59:00.000-07:002018-02-18T17:25:01.453-08:00<div class="MsoNormal">
<span style="background: white; color: #1d2129; line-height: 115%;"><span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Durante muito tempo
tive uma única inspiração e toda minha vida foi um ensaio mesquinho e
desesperado, uma fome, uma sede, sei lá, toda minha vida foi a tentativa
fracassada de abandoná-la, ela, ela, a inspiração, ela, Natal – a cidade dos
saqueadores, dos padres, dos cafajestes sem fé, dos maconheiros, das
castas blindadas, do oceano infinito e dos aviões que voam com o combustível
nas últimas e dos cavalos de aço que desfilam pela Av. Prudente de Morais. Vai,
sim, me deixa ser franco: por que me atormentas, Natal? Por que me persegues
como o espírito torpe da vítima persegue o assassino? Por acaso outros também
não te mataram, outros também não fodem contigo e somem no dia seguinte? Gastei quatro relógios fugindo de tuas
esquinas, Nova Amsterdã. Quatro relógios me esquivando da paisagem. Becos e vielas de um passado faminto. Por um segundo, juguei que te havia superado. Ledo engano. Hoje,
exilado, esqueci-me que te havia esquecido, e tomei carona na recordação de tua vasta cabeleira esparramada sobre as dunas de indiferença e calor. Sabe, Natal, penso que ainda há
muita vida em ti. Vida em teus quadris esburacados. Vida em teus calvos morros
de areia. Vida nos de meu sangue que há quatrocentos anos agonizam presos à
correnteza do hálito marítimo. A promessa é de mais quatrocentos anos de
amor, angustia e esquecimento. Oh, cidade fantasma, lancei ao mar meus sonhos de porcelana. O estômago do mar é um baú de sonhos e afogados. Cedo ou tarde, mandarei ao prelo o
livro que te devo. O livro que prometi aos exus de tua última encruzilhada. O livro que me roubou quatro anos e uma dezena de amigos e um
coleção de vícios. O livro que preciso para seguir em frente – seguir em
frente, infelizmente, significa outro livro. O que são cem mil palavras na vida
de um infeliz, me diz, doce senhora? Falta pouco. Mais um mês, y cambio de
religión. Depois, Natal, te farei novamente realidade. Depois, depois...</span><span style="font-family: "helvetica" , sans-serif; font-size: 10.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-73941536230140547972016-07-29T09:57:00.001-07:002016-07-29T10:06:33.944-07:00<div class="MsoNormal">
Sorte de quem escreve o mesmo texto a vida inteira. O tempo é
um funcionário público cuja repartição é o Caos. O tempo, diferente das amantes
que somem no meio da noite, nunca sacou o batom rosa-choque e escreveu uma balada
de despedida no espelho do banheiro. O tempo não sabe de cor nenhuma canção do
Bob Dylan. O tempo nunca leu Os Irmãos Karamázov sentado no último banco do
último ônibus Natal-João Pessoa. O tempo nos levou à cruz, mas também foi a mão
invisível e pesada que nos trouxe ao mundo. Meia dúzia de milhões o chamam de
Deus. Outros, em vão, tentam relativizá-lo. Semana passada, ganhei um aquário.
Comprei três peixes e um mergulhador de plástico. Ah, se eu pudesse alimentar
os peixes do aquário da sala com o tempo desperdiçado. Oh, se o mergulhador de
plástico preso ao universo não definido do minúsculo aquário fosse capaz de uma
poesia. Urge o envio de duas garrafas de cachaça via sedex para um velho amigo,
uma de minhas setenta e sete promessas pendentes. Urge terminar o livro que há dois
anos e cem mil palavras depois me persegue pelas esquinas. O livro que está nos
lábios rachados das mulheres goianas. O livro que me acompanha à tarde, à
noite, e à madrugada violenta ele bebe e fuma e canta como se o mundo fosse
apenas ele e seu gosto musical. O Nordeste, vocês não sabem?, é um estado de
espírito hipnotizante e brutal. Cada parágrafo de meu livro é um amigo esquecido.
Cada capítulo é um amor sepultado numa geleira de sol e calor, fome e delírio. Pirangi,
Cotovelo & Ponta Negra: essas são as putas que tentaram me afogar e fracassaram.
Se há um bonde chamado desejo, há uma praia chamada desolação. O egoísmo, certamente,
é o único vício do qual ainda não me recuperei. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-19585220026385612662016-06-05T02:28:00.001-07:002017-07-02T17:26:33.122-07:00<span style="background-color: white; color: #1d2129; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">Piazzolla, cretino, quem te disse que é sagrado o tempo? Piazzolla, mira: envelheci como vinho esmaecido no porão de um navio sepultado, entre fantasmas nordestinos e tubarões obesos. Piazzolla, meu querido amigo, se Buenos Aires ainda existisse, palavra de honra como tomaria o primeiro avião Congonhas-Ezeiza. Chegando lá, uma linda dançarina argentina, um coma alcoólico e quem sabe um último pedido. Mas Buenos Aires é passado. E o passado, em se tratando de América do Sul, é</span><span class="text_exposed_show" style="background-color: white; color: #1d2129; display: inline; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;"> mais um livro de traças na prateleira empoeirada. Portanto, está fora de questão. Piazzolla, quem sou eu para te ensinar qualquer coisa , o mais velho dos cachorros velhos, mas aqui vai: no tango e na vida, felicidade é supérfluo.Felicidade, por aqui, só para disfarçar a tristeza e olhe lá. Assim no tango como no céu, a tristeza nossa de cada dia nos dai hoje. Abração, Astor – até que a sorte nos separe.</span>André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-72912660390797741492016-05-01T18:10:00.000-07:002016-05-01T18:10:19.741-07:00<span style="font-family: "Adobe Caslon Pro","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">Preciso, e o quanto antes, da emoção de criança
quando encontrei “Lumar”, o Tubarão-cadáver ainda intacto e prestes a ser
devorado pelo tempo – Cotovelo, 1998. Lumar foi como resolvi chamá-lo. Fui uma
criança prodigiosa em batismos. Todavia, não vem ao caso. Preciso, se não for
pedir muito, da razão que perdi – a troco de quê, ainda não descobri – quando
lancei meu primeiro-único-e-fracassado livro no distante ano de 2010. 2010 reside
numa viela do passado triste, escura e inabitável. Nelson Rodrigues e a velha
frase: “Nada mais distante que o passado-recente.” Em 1998 eu me infiltrava
entre os poucos livros de meu pai, sorrateiramente guardados na estante da
sala, como um móvel inútil a enfeitar o tédio gelatinoso da casa, e bem... eu
já sabia ler e lia/li em letras garrafais “Nelson Rodrigues, Literatura
Comentada”, e aquele livrinho foi o brinquedo mais
precioso de minha infância. Eu era como um pequeno bezerro hipnotizado pela
imagem do Nelson – gordo, macilento e de suspensórios, com um cigarro na mão,
fazendo cara de sério para eternidade. Aquele homem desconhecido e aquele nome “Nelson
Rodr...” tinha algo a me dizer, mas eu ainda não sabia o quê. Não muito tempo
depois, resolvi investigar o que havia para além da imagem do autor. Abri o
livro. Li o livro – no banco de trás do Chevette verde de meu pai, escondido
dos habitantes da casa. E o resultado: Álbum de Família, Anjo Negro e Senhora
dos Afogados – minha introdução à literatura foi através do Nelsão e,
ironicamente, do teatro. Sem sombra de dúvida, aquilo mudou minha vida – não sei
se pra melhor, mas mudou. Em 2010, quando do lançamento do meu Oxum da rua de
trás, outra de suas frases me fisgou de jeito e me acompanha desde então: “O
artista quer ser gênio para alguns, e imbecil para outros. Se puder ser imbecil
para todos, melhor”.</span>André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-16519411343343309522016-02-24T23:08:00.000-08:002016-04-25T01:20:57.626-07:00<div class="MsoNormal">
<b>O primeiro impulso de um jovem
escritor é o sofrimento. Sofrem quanto mais duvidam e se entregam a um mundo
libertino endossado pela solidão. Sentem que estão à parte do mundo. Revoltados
e solitários, buscam conforto na filosofia, na poesia, nos grandes romances, no
quer que imite a vida a ponto de transformá-la. Aí, dá-se o confronto
definitivo do jovem escritor com o mundo incompleto que é seu primeiro inimigo
mortal. Em tudo, a solidão faz-se presente. Ela, a solidão, é o sol da
madrugada. <o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<b>O segundo impulso do jovem
escritor é transportar-se para uma terra escura e risória, uma ilha de ilusão
apartada do mundo tépido que o gerou. Funda a gênese da razão em terreno
íngreme – num sopro, tudo pode desabar. Por outro lado, os grandes devaneios –
estes que nos salvam do tédio ordinário da vida – tem por base os melhores
alicerces, escorados que são pela essência divina que há no homem, em qualquer
homem, de criar e gozar da criação. Assim o faz o jovem escritor. A fim de
conceber uma realidade estritamente pessoal capaz de salvá-lo da ignorância e
da solidão, ilude-se na tentativa de estancar a dor. O homem que se abstém de
criar é uma criatura mutilada. O jovem escritor, egoísta como um anjo preterido
por Deus, percebe, antes de tudo, que sofrimento e criação pertencem ao mesmo
processo excruciante. Para depois da criação e do gozo, a morte. Antes da
morte, tudo.<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<b>Naturalmente, as pessoas
carregam a ânsia de contar suas histórias, não interessa o quão
desinteressantes elas sejam. E quando elas começavam, é impossível fazê-las
parar: nos cafés, nos bares, nas ruas, nos leitos de hospital, nos manicômios.
Alguns entre milhares de psicopatas, motoristas, ex-presidentes, advogados
falidos, por mais patéticos, descobrem-se escritores. Me parecem garotinhas
recém-menstruadas: não se cansam de admirar o próprio sangue frouxo e acreditam
que a partir daí tornaram-se mulheres completas. Uma vez dentro do baile,
promovem-se com a maciez dos publicitários de sabão em pó. Vendem suas ideias
como artigos de primeira necessidade, solventes da impureza humana. Ora, um
escritor não pode vender desinfetante, considerando que é um negociante prático
da sujeira do mundo. Um homem que não alimentou os porcos com a própria carne
não pode dizer que conhece o chiqueiro. <o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<b>Roubei uma quantidade admirável
de livros da biblioteca – mais tarde percebi o quão nefasto é assaltar uma
biblioteca, mas já era tarde. Roubava pra abater a mensalidade cara que meus
pais desembolsavam. Já que eu não fazia uso do sábio conhecimento descartável
dos professores, nada mais justo que compensar aumentando minha biblioteca
particular. Li pouquíssimo Jack London antes de roubar todos os dez exemplares
da obra do London disponíveis na biblioteca – não sei muito bem porque escolhi,
entre tantos livros, a obra do London sem nunca tê-lo lido. Atração magnética,
talvez. Uma vez concretizado o furto, li e reli apaixonadamente a obra do
grande mestre Jack London, esse que atravessou a América de carona nos velhos
trens e passou fome e mendigou e foi ao Alasca e lutou sozinho contra oito
piratas africanos e morreu empanturrado de uísque de péssima qualidade. Tive a
impressão, um tanto doentia, de que passara a conhecer aquele homem mais do que
a mim. Ou, pelo menos, os personagens de seus livros. Tratava-se da mesma
hipnose insustentável de imaginar-me encarnado em outra pele, outra vida – no
entanto, entre essa vida e a outra, apenas o limbo do desejo, das recordações
forjadas, urdidas em devaneios emborrachados. Tudo falso como uma nota de
trinta. Afinal, literatura não é isso? Não é a mentira dita de maneira sublime
a ponto de tornar-se verdadeira? Porquanto, satisfazia-me com a falsificação.
Inventar-se ou descobrir-se, dava na mesma, contanto que algo de novo pintasse
no front. É assim, intercalando falsificações, que se dá a invenção de cada homem.
Comigo não foi diferente.<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<b>Os homens da prateleira
adquiriram a importância do próprio Deus. De um Deus acessível que não sonhasse
dia e noite com bajulação. De um Deus bondoso cuja única vítima de sua invenção
fosse ele mesmo. Prisioneiro e carcereiro do mesmo sonho.</b><b> <o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<b>Só
encontrava verdadeiro prazer na leitura e na escrita – e na maconha, a divina
companheira. O resto era o intervalo entre as duas coisas. Não obstante, a
necessidade me levou ao trabalho, à disciplina. A necessidade me levou a
enxergar, insipidamente, cada banalidade e desgraça contida na vida como uma
dádiva comestível. A necessidade é o motor que move os homens para o
desconhecido. E lá estava eu, escrevendo duas mil palavras por dia por pura e
resoluta necessidade. Pela primeira vez, a dor e o lixo da vida me pareciam um
presente. Estava, também, disposto a romper com a dor e o lixo. Este rompimento
equivalia a reter em mim mais dor e mais lixo. Evoluir não é abandonar os
problemas, mas aperfeiçoá-los – com o máximo de estoicismo que nossos ombros
frágeis possam suportar. Não acreditava, e até hoje não acredito, que a coragem
tenha se manifestado em minha carne senão através da caneta e do papel. <o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white;">
</div>
<div class="MsoNormal">
<b>Ela,
a literatura, era, de uma vez, o mundo, a vida, a beleza e o infortúnio. Era a
ilusão de ter a verdade em mãos, como um sabonete molhado e escorregadio,
cantando no chuveiro.</b><b><o:p></o:p></b></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-32947779676378226732015-03-25T06:09:00.000-07:002015-03-25T06:09:10.947-07:00<div style="background: white; line-height: 14.5pt; margin-bottom: 4.5pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 4.5pt;">
<span style="color: #141823;"><span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Morreria – quixotada
clássica – tranquilamente por amor. Morreria satisfeito e resolvido, como quem
acaba de almoçar e acende um cigarro. Morreria de frio no Chile e de infecção
alimentar no México, se em Santiago e Guadalajara o amor se encontrasse.
Morreria plasmado por mil demônios e anestesiado no ombro das ondas, se no
inferno e no mar alguém me confessasse uma tormenta de amor.</span><span style="font-family: Helvetica, sans-serif; font-size: 10.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-26157652337062102552015-02-27T17:52:00.000-08:002015-02-27T17:54:28.525-08:00De Ponta Negra à Redinha<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Como uma mulher esparramada sobre a cama a espera do
amante, assim é Natal. De Ponta Negra à Redinha, duas conduções e um
entra-e-sai de biquínis, bêbados, ambulantes, crianças etc. Da janela, é nítido
e até ridículo: pouca coisa mudou. Penso em minha avó, que viveu na Redinha nos
anos 60 e que há vinte, trinta anos não faz esse caminho. Enclausurou-se em
Parnamirim – e lá morrerá. Certamente, não reconheceria as ruas que deixou, não
reconheceria o trapiche em ruínas da velha praia e acharia a ponte Newton
Navarro uma extravagância visual. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">De Ponta Negra à Redinha, parando na Ribeira apenas para
alongar o caminho – desejoso que ando de todas as ruas que guardam um pouco de
mim –, Natal parece ter se perdido dentro dela mesma. Durante os três anos e quatro
meses que passei fora, fiz do Centro e da Ribeira o que de mais puro e
impermisto havia em mim – como o cenário velho de uma peça que não sai de
cartaz. Conheci cidades, conversei com o povo desconhecido dessas cidades
desconhecidas, mas nada, absolutamente nada, me conduz ao passado como as
ruínas abandonadas à morte da antiga Natal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Descendo a Junqueira Aires, atual Câmara Cascudo, imagino
quantas tardes meus bisavós, avós e pais suaram e sofreram enquanto
atravessavam essa rua – Quantas, afinal, meu Deus? – Quantas vezes sob o mesmo
sol invencível? – De frente para este oceano enraizado no horizonte – Bebendo a
água do mesmo rio – Amando as mulheres da mesma raça – Todas as mulheres desta
terra que são a mesma – No final das contas, acabaremos no Alecrim. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Arial;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Arial;">Em Ponta Negra, acolchoaram de
pedras o calçadão. A erosão e a maré têm fome, uma fome inesgotável. À primeira
vista, a engenhoca de pedras está funcionando. Ao meu lado, um casal de
turistas. Pelo atropelo de <i>Je Veux</i> e <i>J'aime e Merci e </i>os biquinhos
intermináveis e redondos, são franceses. Dois franceses pálidos em sua primeira
noite em Ponta Negra. O rapazinho (vinte anos, se muito) agarra a namoradinha
pela cintura e gasta com ela um bom verbo. A namoradinha, assim perdida de si,
retribui o abraço com um beijo demorado ao luar. Só há beleza nos clichês para
quem ama e é amado. Ah, se eu falasse francês... seria um idioma, não uma
solução. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Na Redinha, um mulatinho de seus dez, onze anos, vende
picolés. Grita no melhor potiguara aportuguesado sabores, preços e, entre um e
outro, avisa que faz calor na terra. “Olha, olha, olha o picolé... Enfrente o
sol com um picolé, meu boy... O sol é foda... Mas eu tenho picolé... picolé,
meu boy...” Compro um de cajá e lhe deixo com o miúdo do troco. Agradece e continua
sua marcha infantil de picolezeiro, pois o calor que combate é o mesmo que lhe
põe de comer. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">De Ponta Negra à Redinha, Natal é uma, duas, três, quatro
cidades distintas. Onde começa a ilusão, termina a mentira. Enleado ao mar da
Redinha, despeço-me de meus mortos. Saúdo-os como se fossem eles minha pátria,
minha cidade, minha religião errática – saúdo-os porque sei que os mortos que
aqui pereceram, cedo ou tarde, voltarão para nova vida em Natal. De frente para
o mar, exilado em meu próprio chão, nunca um poeta e um verso me foi tão real
quanto “O Natal na terra!” de Rimbaud. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Para além das praias e dos montes,
Rimbaud, excederemos os demônios, os tiranos e a superstição. Tuas vertigens
continuarão fixadas, andarilho de Charleville, e teus silêncios e noites
percorrerão em sonho a cidade do futuro solapada sobre as dunas movediças do
passado. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Bodoni MT","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Sento na areia quente da praia e me pego sem forças para
continuar minha <i>Natal Revisited – </i>Natal
que não é Lisboa, mas que “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me
sinta.” Duas doses de cachaça são o suficiente para me restabelecer. Por via
das dúvidas, desço três, porque é melhor remediar do que prevenir. Restabelecido,
deixo que a paisagem me consuma. Meu espírito é nostálgico porque fraco. Meus
erros andam tão fáceis de entender que acertar parece não fazer sentido. Fatidicamente,
meu esgoto corre para o mar. <i><o:p></o:p></i></span></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-29794077981065655502015-01-09T12:34:00.000-08:002021-01-18T17:11:35.213-08:00Noite de Ano<div class="MsoNormal">
(LIVRO)</div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Escreva amanhã
de manhã como se fosse a última vez, meu amor, ela cochicha. Beba, fume, coma, cante
como se o mundo estivesse para morrer. Até porque hora ou outra um viaduto de impossibilidades desabará sobre nossas cabeças e você só se dará conta do atoleiro que se meteu quando for tarde demais, e é sempre tarde demais, eu tô cansada de saber
disso. Tarde demais para que, eu pergunto, e ela responde Tarde demais para dar
o fora de tudo, mas que se dane, hoje eu só quero relaxar e ver os fogos
explodirem no céu, você sabe o quanto amo fogos de artifício, você sabe que eu
me amarro em tudo quanto é artificial nesse mundo, e estou para nascer hoje à noite uma vez
mais, uma vez mais e não pela última vez. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Ela ameaça
chorar, porque quando bêbada ela arranja um motivo duro e
impossível para chorar, e aí se debate, grita, e duas doses depois já está
feliz e acesa novamente, mas dessa vez ela não chora, e nós nos sentamos no
sofá branco rasgado de três anos de uso e fodas e sintonizamos Cartola como uma
britadeira sacolejando as paredes do apartamento, e também para que as pessoas
lá fora saibam que hoje estamos felizes, ou pelo menos que maquiamos um clima
qualquer de felicidade – e as luzinhas de Natal ainda piscam amarradas a árvore
de palitinhos e pano dourado que ela mesma confeccionou. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">A champanhota
vagabunda não chega para onde planejamos ir, e logo passamos para Vodka com
Pepsi, torramos um quarto-zagueiro, daí para Vodka pura um pulo, e de Cartola
para Elis Regina e de Elis para Bob Dylan, sempre ele, o mesmo Dylan que cantou
<i>Like a Rolling Stone</i> também disse </span><i><span style="font-family: "Georgia","serif"; mso-bidi-font-family: Arial;">Leave your stepping stones behind, something calls
for you, forget the dead you've left, they will not follow you</span></i><b><span style="color: #a3a3a3; font-family: "Georgia","serif"; mso-bidi-font-family: Arial;">.</span></b><span style="font-family: "Georgia","serif";"> Que em tradução aleatória para o <i>português vulgaris</i> quer dizer Deixe suas pedras para trás, alguém o
chama, esqueça os mortos que você abandonou, eles não o seguirão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">O mundo, ela me
diz enquanto levanta o terceiro copo de Absolut, o mundo vive uma merda de
decadência romântica, e o que as pessoas são em suas socialnetworks de araque é
muito do piegas, chato, pedante, malcheiroso, e aí ligamos a TV para conferir o
sorteio da mega-sena e definitivamente não estamos milionários. Rasgamos os
bilhetes de loteria, atiramos o papel picado pela janela e ainda da nossa
janela, nono andar, Rua 18, Centro de Goiânia, são dez e dez da noite e podemos
ver um mar de gente pobre e calcinada rasgando a Araguaia em direção à Praça
Cívica, onde o show de fogos acontecerá, e todas elas tão solitárias de si,
gente desse solo arruinado do virtuoso Estado de Goiás, essa terra ondulada e
louca que eu aprendi a amar – e é impossível não pensar que faltam apenas
quinze dias para eu me mandar daqui.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Não é fácil
abandonar três anos juntos vivendo sob o mesmo teto, dividindo a cama, a alucinação
incoercível a par de todas as iguarias possíveis, a dor, o tédio, a dança e,
claro, as contas. Não é fácil abandonar e por isso mesmo, por não se tratar de
uma tarefa fácil, é que vale à pena. Bem, cresci numa casa de nordestinos
pegajosos e nunca lidei verdadeiramente com a solidão. Quer dizer, sempre fui
um solitário, mas nunca estive só. Agora, é uma questão de tempo. Basta sentar
e esperar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Descemos a Av. Araguaia,
falta precisamente um minuto para o ano novo estourar na consciência das
pessoas e os fogos de artificio pintarem o céu sem estrelas da capital do pequi,
estamos abraçados, eu com uma garrafa escorregadia de espumante na mão e ela
tentando ligar para os pais antes que o ano novo seja oficialmente decretado
pelas autoridades do mundo, mas ela não consegue falar com os pais e a garrafa
gela em minhas mãos, faltam agora alguns segundos, nos olhamos, nos beijamos, e
vivemos a cena que ao longo da vida assistimos duas mil vezes repetida no
cinema – o locutor do espetáculo puxa a contagem regressiva, dez, nove...
cinco, quatro... três, dois, um... e o ano novo chega – ah, pobres dos que tem consciência do fim ou do começo de
qualquer coisa – a esses chamamos profetas e merecem todos, sem exceção, a
fogueira, a guilhotina e por que não um caso de amor fracassado? Onde está o
cotidiano, ela me pergunta, onde está o cotidiano a essa hora da vida para nos
salvar do fim, amor?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Sim, meu bem, não
pude e/ou consegui dizer antes, mas o faço agora: o cotidiano não existe, o que
há é a inércia dos nossos sonhos ultrapassados, o convite para viver a vida que
não planejamos – pois nenhuma vida é digna o suficiente para ser planejada.
Improvisemos, meu amor, improvisemos como o comediante que esqueceu o fim da
piada, improvisemos porque a vida é uma anedota velha, gasta, sem graça,
improvisemos porque viver é essencialmente sofrer, e porra, uai! não foi você
quem me apresentou toneladas de livros budistas e indianos e teorias do amor impermanente
e tântrico e cósmico e a putaqueopariu na esperança de que a ressaca não nos
encontrasse na manhã seguinte? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Dentro do taxi,
rumo à festa de ano novo de um amigo em sua casa nova, quintal gigantesco,
bebida e carne, e as mesmas velhas pessoas que abraçaremos como se fossem
outras, Ana é só alegria, sorri baratinada para a cidade da janela do carro e
eu me contorço todo de êxtase movido pelo álcool, pelo clima, situação, hora,
data, local, tudo, e damos a mão enquanto o taxista toma o caminho mais longo e
confuso – e o que seria de mim se não fosse enganado uma vez mais pela vida,
agora condignamente representada pelo taxista em sua odisseia contínua com o
taxímetro?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">O taxímetro
aponta trinta e quatro reais e já estamos no Jardim América, Viviane nos recebe, abraço Rodrigo e saco o charuto cubano
Romeo y Julieta que comprei para ele, ele me dá uma caneca do Corinthians que
aliás esqueci em sua casa após nove ou dez doses de vodka com energético, e
sentamos na última mesa vaga da festa, em frente à churrasqueira comandada por
um carioca amigo de Rodrigo que teve o pai fuzilado por cinco tiros de tauros
na porta de casa, ele faz questão de dizer, cinco tiros de P.T., meu pai morto
sem chance, e ele, o carioca comandante da churrasqueira, o filho do pai morto,
esteve em Natal, sim, esteve e adorou a cidade e nunca viu coisa mais bela,
assim são os turistas no buraco solar onde nasci, e ele me chama de Potiguar e
eu me sinto verdadeiramente lisonjeado, afinal o Rio Grande do Norte é
praticamente a capital do Brasil, e conversamos sobre a praia de Genipabu,
dromedários e passeios de Bugre, e a vodka corre, corre solta em meu sangue coalhado,
Ana reclama da areia molhada do quintal que manchou seu salto de camurça bege,
minha família liga e eu choro e grito e xingo, falo com minhas três sobrinhas
que ainda não sabem porra nenhuma da vida – e é por isso que as adoro, por não
saberem porra nenhuma da vida –, falo com meu irmão mais novo que é como o
filho que eu não quero ter, e a festa segue, segue com a banda de Rodrigo no palco
armado no começo do alpendre gigantesco e eles executam sutilmente: “Se alguém
por mim perguntar, diga que só vou voltar, depois que me encontrar.” <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">As coisas mudam
de lugar, mas Cartola continua o mesmo. Cartola que aos cinquenta anos lavava
carros em Ipanema. E aos cinquenta, meu amor, onde estaremos? Em quais ruas
tristes e salgadas lavaremos nossos carros? Se disser que espero estar morto,
minto. Não é de hoje que só digo mentiras a respeito da morte. No entanto, não
interessa. Há sempre uma muleta ao alcance de todos e as minhas estão na
prateleira, e hoje, primeiro de janeiro, minha muleta é Rimbaud, que longe de
Deus pode anunciar: “<span style="background: white;">Na imensa mansão de vidros
ainda gotejantes, meninos de luto admiram imagens maravilhosas (...) Tudo é um
tédio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa num pote de barro, não vai
querer jamais nos contar tudo o que sabe, e que nós ignoramos.”</span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Em frente à
churrasqueira, Ana e eu nos reconciliados com o mundo. Por um instante, ela
lembra que eu estou indo embora e chora (o que, ultimamente, tem acontecido a
cada dez minutos), balbucia como pode que me ama e chora novamente. A maquiagem
que ela demorou meia hora em frente ao espelho bolando já foi para o beleléu. Escorre
como água suja de seus olhos manchados. É esquisito pensar que se dormimos
quinze noites separados ao longo de três anos, foi muito. Se passamos
um único dia sem nos falar, foi demasiado. E agora planejamos a ausência total
um do outro. Ela com nosso apartamento que será só seu. Eu com minha vida
que agora será só minha – só minha até que Deus me anistie do compromisso de
consciência e sofrimento e humildade tacanha que fantasio para mim. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">O dia chega às
sete da matina, estamos nós dois e mais cinco pessoas de uma festa de quarenta
na última mesa de sobreviventes de vodka, uísque e cerveja quente, e Ana já
cantou no improviso Ovelha Negra, <i>Levava
uma vida sosseeeeeegada, gostava de sombra e água frescaaaaaa, Meu Deus, quanto
tempo eu passeeeeei sem saber</i>, e eu
Tudo Outra Vez, <i>Até parece que foi ontem
minhaaaa mocidade, com diploma de sofrer de outra universidadeeeee, minha fala
nordestina, quero esquecer o francês... <o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><i><br></i></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Dizer o que se
pensa é uma arte fácil – ainda que não seja grande coisa. Basta falar
instintivamente, utilizar-se das palavras como companhias indistintas a vontade
e ao pensamento. Dizer o que se pensa é a arte do homem que não tem nada a
perder – e se tivesse, de que adiantaria manter o que se tem em nome de uma
falcatrua impossível? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";"><br></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Voltamos pra
casa levados novamente por um taxista que prefere o caminho mais difícil.
Ah, longe de mim me queixar dos caminhos que os outros escolhem em meu nome. Antes
do banho, fodemos a primeira foda do ano que é sempre a melhor. Cansada,
desaba ainda vestida na cama e esquece o chuveiro. Linda, irresistivelmente linda.
<o:p></o:p></span></div>
<br>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Georgia","serif";">Me sinto
revigorado e atônito da vida que me espera como uma cortesã mascarada – não me
esqueço do banho e vou para ele com uma taça de vinho passado que encontro na
geladeira. A água está fria. O sol já alto me lembra que há vida lá fora, vida
desconhecida nas avenidas, ruas, becos, vida que continuará aconteça o que
acontecer comigo, com Ana, com os amigos que há tempos não encontro e tão cedo
não reencontrarei – inclusive convosco, leitor, inclusive convosco que é como
um fantasma camuflado na luz evanescida do mundo. <o:p></o:p></span></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-66879813744835937472014-04-17T15:38:00.001-07:002014-11-06T14:54:26.021-08:00<div class="MsoNormal">
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Meus dias em Goiânia estão chegando ao fim. Escrevi, reescrevi e
trescrevi esse mesmo lero ao longo das ultimas semanas. Exaustivamente,
reproduzo cenas, abraços, despedidas, imagens, frases, sons, impressões que
dizem mais do passado que do futuro-provável. A única história que me interessa
é a minha em Goiânia. Em minha cabeça só há espaço para o turbilhão que essa
cidade foi e o que ela será para mim depois de minha partida. Que as coisas
continuam com ou sem nossa presença, que as pessoas seguem adiante e as paisagens
e os carros, é o óbvio e será sempre assim. O importante é como o passado nos
possui, ainda de sua distancia. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
Prestes a deixar a prisão, penso-a como nunca dantes. Alcatraz é Goiânia. Não
possuo estômago, nem disposição para correr atrás de outro assunto. É assim na
vida, é assim na escrita. O que significa que dando no pé ou não é sobre isso
que escreverei... fatidicamente. É incrível que durante dois anos e meio
acoplado aos arranha-céus GYNianos e à noite pura e selvagem e às pessoas... eu
tenha escrito, essencialmente, pouquíssimas páginas sobre o que se passou
comigo aqui. Comigo fumado da cabeça aos pés. Comigo com o bolso cheio. Comigo
repleto de impressões. Comigo ao lado de Ana. Comigo estorricado de sol. Comigo
paranoico. Comigo fodido e mal pago... Meu olhar estava sempre voltado para a
ficção, para o passado (em breve, lá estará minha exuberante e caustica
Goiânia), para o que, então, eu considerava inalienável.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
Sinceramente, me pergunto: com o que me preocupo mais: A vida ou a escrita?
Viver para escrever, como disse o outro? Escrever para continuar de pé,
atento, desengonçadamente preparado? Viver para que, uma vez escravo da
vida, ela forneça ao escritor material verdadeiro e autêntico? Escrever
para que a vida não se amofine como um vira-lata cansado de comer do lixo?
Penso que é impossível separar uma da outra, lalalá. Mas são duas coisas
distintas, por mais que tentemos juntá-las como irmãs siamesas que comem do mesmo prato. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">
A vida, quando passada aqui no papel, quase nunca é insuportável. Os
acontecimentos adquirem novos ritmos, as sombras ganham corpo, os
olhos alcançam o que raramente percebemos quando em ação. Ao passo que
Ao Vivo, só para manjar Belchior, é muito pior. Sofrimento e felicidade
andam de mãos dadas, o mesmo instinto impulsivo trabalhando sobre os homens...
Amando-os, fodendo-os indiscriminadamente, arquitetando-os insustentáveis, para
que um dia acabem todos vítimas do mesmo carrasco. E nada é uma questão de
sorte... nada.<o:p></o:p></span></div>
</div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-58914320555501062032014-03-09T14:41:00.000-07:002020-03-08T00:30:30.644-08:00Cap. 07 -<div class="MsoNormal">
Lá com
meus treze anos... estava pronto pra sair da prisão. Por “pronto” entendam
despreparado. E por “prisão” leiam a única forma de vida que eu conhecia. Como
uma história brasileira de liberdade, o colonizador seria o libertador. </div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Já
estava cheio, por aqui de crendices. Entalado. Não sentia em mim um simples
estalo de vida verdadeira. Apenas tédio, ilusão, superstições... Esturricado de
superstições. Obviamente, eu estava errado. Errado, sim, ao pensar que tudo o
que vivera até então não era vida, mas uma subvida, uma existência regateada. Indigesta
porque me enfiaram o alimento goela abaixo. De fato, a indigestão não era outra
coisa senão vida. O que fiz? Declarei guerra aos deuses de minha casa. Eu estava
enfadado. Cansado do Deus dos outros. Cansado de cantar a canção que escolheram pra mim. Toda minha existência me parecia uma grande farsa. Qualquer outro, um pouco mais imbecil, mergulharia ainda mais fundo no
rio de merda. Faria do desencanto uma dócil quimera. Do cão raivoso um
pequinês que ladra... mas não morde. Naquelas de tacar fogo no circo, eu disse: “Não acredito em
Deus. Que se foda, ele e o maldito Vaticano onde nasci.” No fundo, ainda
acreditava. Como não acreditar? A blasfêmia é a oração da desesperança - ainda assim, uma oração.<br />
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Todo domingo a família se reunia na casa de minha avó. O Deus deles ensinava que a família é uma entidade sagrada. Invariavelmente alguém dava um jeito de por Deus na conversa. Mezzo Nietzsche, mezzo Pedro de Lara, entre uma garfada ou outra de salpicão, eu atravessava: “Deus é
uma farsa, Deus é uma aberração.” Mas era da boca pra fora. Estupidamente, da
boca pra fora. Tentei,
a todo custo, crer na ideia de que Deus não passava de um pesadelo coletivo. Um pesadelo
dispendioso, inverossímil. Um pesadelo concebido numa noite escura de medo e ignorância.
A única maneira possível de não meter Deus no limiar dos acontecimentos seria
esquecê-lo. Evitá-lo. Mas como esquecê-lo, se marcava reunião lá em casa, no cômodo ao lado, com seus macaquinhos, terça, quinta e domingo? E como
desfazer-me dos macaquinhos se eu mesmo urrava, comia banana e coçava o cu como
um chimpanzé? Era impossível me desvencilhar da perdigueira de milagres... Das
duas mil horas de voo a cabo do sobrenatural. Deus, sim, esse me perseguiu. Não
porque tentasse me devolver ao rebanho, não por zelo de criador... Mas
por galhofa, fastio mesmo. Não sei. É provável que tivesse outros cinco bilhões
de pessoas aglutinadas no planeta sob sua supervisão. Gerente de um
empreendimento falido. Ou melhor: pensei, bastante convicto certo tempo, que
Deus inventara um sistema com vida própria capaz de mover as engrenagens do
mundo por si só. Autossuficiente. Que não precisasse de seu auxílio. Também
carecia, ora, O pobre general, O maestro inolvidável, de dias santos, pontos
facultativos, feriados religiosos... É provável que tenha dado vida à vida. Está pouco se
fodendo pro destino dos homens. Que os “filhotes” cresçam débeis e alucinados,
viciados em crack, caixas de supermercado, banqueiros, marxistas, fascistas,
nordestinos, gaúchos, pindamonhangabenses. Eles que façam o próprio destino. Que
modelem no vazio quixotesco da carne a felicidade e a miséria. A infelicidade e
a riqueza. Que aprendam a escrever no próprio idioma. Contudo, há uma mão invisível
acendendo e apagando as luzes. Apertando os torniquetes e decepando as cabeças.
Uma mão sem cor ou cheiro que construiu toda a matéria e luz num lance de
solidão. E a solidão é o presente dos que se atrevem a entender.<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pensando com meus botões... se houvesse criado o universo, da maconha ao salaminho, do maoísmo às
chicas paraguaias, faria igualzinho. Melhor: seria um
pouquinho mais egoísta. Seria, por sua vez, Grego, não Hebreu. Aristóteles, não
Moisés. Confundiria meu sangue com o sangue de belíssimas espécimes. Brancas Gordurosas,
Helenas de Tróia, Rainhas Egípcias, Índias Piauienses, Escravas Angolanas, Mulatas
do Salgueiro, Ninfetinhas do Youtube. Imaginação, creio, é um passatempo que
não faz mal a ninguém. Que dirá aos Deuses, que vivem disso. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Aos
onze anos, comecei a ler qualquer coisa que me caísse às mãos. O que pintasse
eu lia. Li Álbum de Família, Nelson Rodrigues. Saí maravilhado com a podridão
dos personagens. De queixo caído, roçando os calcanhares. Então é possível? Ser
fraco, vil, néscio, avacalhado, profundo, e ainda alcançar a verdade sem
culpa... Despreocupadamente? Escrevo a palavra “verdade” e quase tenho um
acesso de riso. Gargalho... Pronto, já foi. Contenho-me. Preciso continuar a
escrever. O que eu sabia de verdadeiro? Merda nenhuma. Não mais que um babuíno.
Muito embora me dispusesse em mentiras, invencionices, a verdade, já aquela época,
tinha um gostinho especial. Em outras palavras: a verdade era uma puta
inatingível, uma mulher que eu esperaria um tempo mais pra comer. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ademais,
é um encontro inevitável. O homem babuíno com sua verdade. Se eu fugisse dela,
no final das contas, não encontraria outro monstro senão minha face descabelada
esculpida no espelho embaçado. Não encontraria outro monstro senão... eu. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Na
biblioteca do colégio – isso numa cidade estorricada, litorânea, Natal quente,
Natal de sunga – na biblioteca do colégio o mundo parecia feito de uma substância
em total diferente daquela que eu abandonava minutos antes de cruzar o corredor
lacônico, girar a maçaneta de prata da porta antiga imensa de madeira esculpida
com um cartaz escrito “Não faça barulho, grato. Ass: A direção”... Pra então encontrar
um paraíso silencioso e frio. Um paraíso de prateleiras. Longas mesas
envernizadas. Livros antigos com o carimbo do Gustavo Capanema, ministro do
Getúlio. A biblioteca era gigante, e quanto maior a biblioteca, mais despovoada.
Numa prateleira escura, tropecei em Gaia Ciência. Em três aulas cabuladas,
matei o volume. Conseguinte, O Anticristo e Zaratustra. Nietzsche me ensinou
muito. Tinha o que dizer. E disse, o que é mais importante do que apenas tê-lo
a dizer. Pus na cachola: só vale a pena se houver algo a ser dito. Eu não fazia
ideia do que dizer. No entanto, far-se-ia necessário abrir a boca. Empunhar a
pena bamba, escorregadia. Ser um escritor. Agir como um escritor. E o mais
importante: agir em silêncio como um escritor. O silêncio não era de todo ruim. Naturalmente, um livro me levou a outro. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Certa
vez, roubei um exemplar da poesia completa do Garcia Lorca enfiado dentro da
cueca. Ainda no pátio do colégio, enfureci-me de vida, êxtase, fascinado com os
saiotes que iam e viam movimentando anarquicamente as pernoquinhas luzidias. Lorca
em minha cabeçola tocando a dispneia do prazer. Na contracapa, dizia que era <i>viado</i>, maricon. Paris é uma festa:
talvez o punhal mais profundo daqueles dias de umidade bibliotecária. Paris,
Paris! O que havia naquela cidade que homem nenhum encontraria fora dela? Hemingway
disse: conte sua história. Sim, contarei minha história. Mas que história, se o
que tinha era uma história incompleta? Eu já era um escritor. Lia e escrevia
todos os dias. Arranjei um diário. Enchi o peito: “Quando a ânsia surgir em
mim, como um maremoto arrastando casas, sento e escrevo.” Sentar e escrever,
ponto. Não abri o jogo pra ninguém. Fiz-me de imbecil. Pra passar melhor,
claro. Escondi o tal diário debaixo da cama como se fosse uma magazine pornô. Quando
a tal ânsia surgia, que nem um espírito epilético ansioso por se comunicar, eu
sentava e mandava brasa. Inventava uma história sem pé nem cabeça. Deixava
minha impressão sobre as histórias de outros escritores, geralmente o que havia
lido pela manhã. Narrava, tão somente, o aspecto físico das pessoas que me
rodeavam, sobretudo as mulheres. Eternamente as mulheres. Em geral, era mais um
pintor do que um escritor. Descrevia o estado bruto das coisas, não as ideias. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Meu
discurso de garotão, então, uma colcha de retalhos. Recitava, imitava, plagiava os figurões que lia a ponto de sabê-los de cor – à noite, dormia com
o pensamento no que leria no dia seguinte... Pensando, também, numa história
inédita, uma história que nenhum outro homem jamais escreveu. Pus na cabeça...
meio zureta: Uma história original. Preciso de uma história original.</div>
<br />
<div class="MsoNormal">
Exasperado,
entre a esperança e o torpor... Eu escrevia. Abandonava-me à insônia. Sentava
no chão frio. Apoiava o caderno na cama amarrotada. Em transe, escrevia uma,
duas, três horas. Por fim, relia o primeiro parágrafo. Achava tudo bastante descartável.
Uma bela bosta. Como quem dá aquela olhadinha de soslaio na merda que acaba de
soltar e puxa a descarga. Reler o primeiro parágrafo era o bastante. Rasgava o
que havia escrito e dormia em paz. <o:p></o:p></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-54932057884307967382014-03-04T16:24:00.004-08:002018-02-12T06:28:53.000-08:00Os cadáveres estão na prisão, e a prisão é foda<br />
<br />
<div style="margin: 0cm 0cm 12pt;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;"><i>"Eu não estou
interessado<br />
Em nenhuma teoria<br />
Em nenhuma fantasia<br />
Nem no algo mais<br />
Nem em tinta pro meu rosto<br />
Ou oba oba, ou melodia<br />
Para acompanhar bocejos<br />
Sonhos matinais..."</i><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
Belchior<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: large;">O que nos aproximou foi a escrita</span>, a vontade em comum que
tínhamos (não sei se ainda temos, ou pelo menos se eu ainda tenho) de escrever
e ver toda uma vida lúgubre e salgada alforriada pela escrita. Um escritor, quando
não é um completo covarde, é alguém que injeta em si doses de coragem infantil
e estúpida. Infantilizado, está disposto a morrer. Não está preparado para
morrer, mas, digamos... disposto. Antes da morte, o escritor sonha com o
sacrifício. Como um selvagem ruim, sacrifica os “pilares” do mundo ordinário e
obrigatório. Família, dinheiro, amor, religião. E por que o faz? O faz com um
olho na glória, outro em si. O faz por medo da asfixia. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Acredito que o verdadeiro escritor – uma espécie de ser
humano que ainda não existe, ou que existe somente no imaginário heroico dos leitores –
é aquele que está a todo instante prestes a se suicidar ou ser assassinado. Não
digo que morrerá assim ou assado – pouco me importa a situação que um homem é apresentado
ao coveiro. Digo que há uma ferrugem, uma dor psicótica, uma felicidade alcantilada,
uma paranoia corriqueira alojando-se sobre a terra e sob nós. É uma realidade
que cresce da terra, e não dos céus. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por hora, há um distante gosto de morte em tudo quanto é
vida. Não é um gosto ruim, mas incomodo. Não é um presente dos Deuses, mas uma
benção da carne. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele, meu amigo escritor, Rogério Medice, foi o mais infantil
dos homens que conheci. Comportava-se, literalmente, como uma criança aparelhada
de uma inteligência fora do comum, excepcional. Se sorria, sorria pelos mesmos
motivos que levam uma criança a sorrir. Se esperneava, esperneava como uma
criança insatisfeita e bêbada. Se era um homem consciente? Claro, como não? Consciente
e auspicioso, como são os bons escritores; mas seu talento também era o talento
da criança que não sabe onde pisa. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Antes de Rogério Medice, tive alguns amigos “artistas”.
Sobretudo escritores. Enojei-me de todos. Enojei-me porque: ou eram chiques e
refinados, ou faltava talento na negociação. Talento essencial para falar, talento para
beber, talento para andar, talento até para fracassar. Quer dizer, sempre
preferi gente de verdade. Gente que não tem a obrigação espiritualeba de ser
profunda, de aparentar e distribuir profundidade – profundidade, em poder
desses asnos, é confete. Gente que não está preocupada com o individualismo
Kierkegaardiano nem está a par da história de nada. Em resumo: me dou
muitíssimo com os ignorantes, os idiotas assumidos, as bestas feras. Quer
dizer, nem tanto ao sul nem tanto ao norte. Sem dúvida há mais sabedoria nos
manicômios que nas universidades. Nos bares silenciosos que em toda música do
universo. Nas cidades arrasadas pelo tédio que nas metrópoles conquistadas. O
que eu não suporto nesses homens da arte é o mesmo que não suporto em mim: uma superioridade
estoica, virtuosa, forjada em aço. Uma superioridade que é como uma droga
aborrecida. Que é como o mel para abelhas diabéticas. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quando nos conhecemos, eu era o cara da comparação.
Comparava-me a tudo, do reles ao espetacular: “Será que essa cara escreve
melhor do que eu? Será que é pior?” Desejava-lhe, claro, que fosse um milhão de
vezes pior. Um milhão de vezes mais detestável e abominável... como escritor e
como homem. Tentei acertá-lo na mosca, analisá-lo, mas não era um tipo
qualquer. Esquartejado, verborrágico, mentiroso, dúbio, torpe... capaz mesmo do
mais crédulo e tenro afeto... quando lhe convinha, claro. Em parte pelo que
escrevia, em parte pelo <i><span style="background: white; color: #444444;">mise-en-scéne</span></i><span style="background: white; color: #444444; font-family: "arial" , "sans-serif";"> </span>que
praticava na mesa de bar, não era uma análise fácil. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br />
Há um infinito de tipos e variedades de escritores. Há os
buchas, que sugam tudo de outros escritores, amputados de uma mísera ideia
original. Há os fracassados, que sonham objetivamente com a vitória. Há os
desgraçados, que só tem olhos para a lama e se alimentam bravamente dela. Há,
em menor escala, claro, os dinheiristas, que fariam Shopenhauer levantar do
túmulo para uma longa cagada. Há, inclusive, os que escrevem simplesmente para
dormir em paz. Que tipo de escritor eu sou? Só o esquecimento dirá. Alegra-me saber que seremos todos esquecidos. Desgraçadamente esquecidos. É um
pensamento legal que eu tenho... esse do esquecimento. Dure um ano ou um
século, seremos esquecidos. Irremediavelmente apagados da lembrança, do
consciente dos homens. Ainda que algo de nós permaneça fincado no solo ruim da
eternidade, uma imagem que seja, será essa uma imagem mentirosa, borrada,
deturpada. Já sonhei o bastante para saber que os sonhos afastam o homem do
conhecimento, da vida propriamente dita. Se sonho com o conhecimento?... É
possível. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Dizia que a
escrita nos aproximou. Bem, as almas de verdade estavam todas na prateleira.
Ainda estão, posso garantir. Não tive uma infância triste, mas inusitada. Não
tive uma adolescência claustrofóbica, mas desengonçada e ufanista. Banquei o mini-Dionísio
oitenta e cinco por cento do tempo dopado, viciado, louco pacas. O que me
aproximou dos livros? A sede de despertar. Despertar da vida ou para vida? Tão
insuficiente quanto a vida... são as respostas que arranjamos para justificá-la. O artista é aquele que começa do zero e
começar do zero implica numa série de tratativas e especulações galácticas que
podem enlouquecer ou desabilitar o mais consciente dos homens. Começar do zero
implica em: danação, angustia, catarse... Ademais, há um brilho de felicidade
lunática nessa merda que vale o esforço. Ah! Tempos de insurgente metafísica!
Tempos de Álvaro de Campos! Tempos de naufrágio, dor e alegria desmotivada! É
como se a vida, reinventada, ainda que por um curto período, adquirisse
contorno e ritmo e sentido – por mais patética. Não faço a mínima como vive o
homem incapaz de vida intelectual. Incapaz de comover-se diante da arte – e é
justamente com esse tipo de nego que eu convivo todos os dias. Eles, <i>Os incapazes</i>, são meus seres humanos de
estimação: talvez eu também seja o deles, o cachorrinho que escreve, o filho
pródigo, o vizinho cabeludo, o rapaz sentado ao lado no ônibus apinhado. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Acredito em
Deus, sem dúvida. Enrolei-me pra burro com o Deus inquisidor dos homens que me
apresentaram a Deus. Por fim, criei meu próprio Deus. Dei-lhe regras, tábuas...
fiz dele minha imagem e semelhança. Hoje, ele e eu conseguimos ocupar o mesmo
quarto, o mesmo horizonte perverso. Rimbaud, o homem do “Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade. É o mar misturado ao sol”, ouviu, certa vez, de um padre,
que ele tinha “a maior fé já vista em um homem. Uma fé lúcida e corajosa.” Quis, durante muito tempo, a
fé rimbaudiana. A fé que não é cega, mas que vive envolta em delírios. Quis
essa fé antes mesmo da leitura dos grandes poetas e antes da invenção de meu
próprio Deus justo e sábio – justo e sábio aos meus olhos, claro. A fé genuína
e a grande arte, assim acredito, são a mesma coisa. Ocupam o mesmo pedaço devastado
de terra. Dividem a cama como prostitutas companheiras de quarto após uma noite
de trabalho estafante.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Porra, chega de enrolação. O melhor, sempre, é ir direto ao
ponto: A escrita nos aproximou, sim. Eu era um escritor. Ele, outro. Éramos
dispares e no entanto alimentávamos a mesma insegurança, a mesma ideia mutante
de ganhar o mundo e com ele os... leitores? (sic). “Os leitores, meu amigo, não
existem”, eu disse. Respondeu-me “Não escrevo para eles, escrevo para mim.” Eu
tinha vinte e um. Ele, trinta e três – acho. Crescemos em gerações aberrações diferentes.
Ideias e bitolações diferentes. O artilheiro da minha infância fora o Romário. A
copa perdida de 94. O artilheiro de sua infância: Zico. A copa vencida de 82. Ele
viveu um bocado cego em torno de almas negras e esfumaçadas. Eu vivi um bocado de
olhos abertos entre espíritos de luz inefável e Deuses abastados. Ele cresceu
numa casa sem pai, de mãe carola e irmãos neuróticos e autocentrados. Eu, numa
casa de kardecistitas positivistas, numa família de trezentos anos e trezentos
habitantes. Ele, carioca de cidade dormitório. Eu, nordestino litorâneo. Em
comum, o mar. A presença equidistante do mar. A presença aniquiladora do
Atlântico azulado e suas ondinhas de balada do Tim Maia – o tal infinito indo e
vindo. As praias docemente negadas. As bucetas estrondosamente abertas para o
conhecimento de si, e sim, sim, sim! Porque é nelas que começamos a longa
jornada desértica de miragens: a jornada da perdição. Primeiro, perdemos um
pouco de si; depois, perdemo-las para todo sempre até que nova buceta apareça. É
no outro (bucetas, cus e caralhos, vai do gosto) que ambicionamos, pela
primeira vez, nos enxergamos de relance. No outro está uma parte de nós que nem
toda solidão e iluminação monástica podem alcançar. Dentro de uma caixinha
dourada, muitíssimo bem escondida dentro do outro, está <i>A parte</i> que nos cabe. Ao abrir a caixinha, encontramos pouco, ou
quase nada. No entanto, se não se abre a tal caixinha, corre-se o risco de passar
o resto da vida curioso para saber o que há dentro dela. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Éramos escritores... já disse isso? Em pior das hipóteses:
nos comportávamos como escritores. Bocejávamos e bebíamos como escritores. Durante
algum tempo, elogiávamos um ao outro, porque, em geral, é esse o passaporte da
amizade literária: o elogio mútuo, o intercambio de bajulação para que ambas as
alminhas prossigam sem nenhum sobressalto. Escritores no País das Maravilhas. Como
bons animais de rua, exibimo-nos, contamo-nos, inventamo-nos... senão para
despertar a atenção um do outro, ao menos para nos aceitarmos primariamente. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Trombamos em Goiânia, palco de nossas cruzadas
particulares, palco da dança sem música. Indissociavelmente, estávamos nessa
(Goiânia sertaneja de baixa umidade) por conta e causa de mulheres. Ele com a
dele que o sustentava. Eu com a minha que eu ambicionava sustentar. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Quer dizer que André, o escritor, acredita em Deus? – foi,
precisamente, a terceira coisa que me perguntou. As duas primeiras não
interessam. Rogério achava Deus um utensilio dispensável. Não concordava que em
meio a criação de um mundo espetacular de livre-arbítrio Deus desencadeara a
dor e a derrota. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Criado onde eu fui criado, só assim, cara – eu disse,
mostrando-lhe a medalhinha de São Jorge e o anel de prata com a estrela de Davi.
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Era minha segunda semana em Goiânia. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Coincidentemente, eu estava de malas prontas para Goiânia
quando Médice, através do Correios & Telégrafos de nosso tempo, a internet,
pediu-me um exemplar de O Oxum da rua de trás (livro que havia acabado de
lançar) e papo vai, papo vem, ficamos de nos encontrar quando de minha chegada
à terra dos planaltos depauperados, a terra da meleca seca.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Sentamos no primeiro pé sujo que encontramos, entre a 3 e a
Araguaia. O sujeito foi logo falando de concursos e isso e aquilo e “em breve
ganharei um concurso literário e lavarei o cu com a grana, bicho, grana boa,
grana publica, grana que interessa.” Eu lhe disse que minha ambição era
escrever um grande livro de verdade e para provar minha real ambição improvisei
umas palavrinhas bonitas como é de costume e assim, através dos falsos sonhos
irrealizáveis... apresentamo-nos. Estávamos, cada um, no limiar de si.
Encruzilhados pela vida e suas circunstancias. A vida, estrepitosamente, nos
carregava, cada um a sua maneira, à escrita, ao encontro inadiável com a
própria voz. A própria voz que para um escritor é como a descoberta de um Deus
justo e sábio entre um milhão de Deuses sortidos. Um escritor só consegue a
própria voz após um longo período imerso em rouquidão. Após gritar como um
desiludido e após digerir um furacão. Havíamos gritado o suficiente? Habitava
um furacão adormecido em nossos estômagos calejados? O certo é que estávamos
próximos... próximos o suficiente para nos julgarmos conscientes, hábeis... <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br />
O que não esperávamos – nem de longe, acho – é que essa
mesma escrita redentora, essa capacidade de analisar a tudo e emitir opiniões e
estilos, essa droga exaustiva e sem volta, desempenhasse também o papel de
carrasco. Não digo que nos executaram – ou que ela nos executou. Não digo
porque ainda demorará pacas até que saibamos os pormenores de nossa própria <i>gran</i> execução. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Toda história é um prólogo do passado verdadeiro, ou da
impressão do passado. É impossível que a escrita, por mais confessional,
reproduza absolutamente a verdade dos fatos, as vozes, as ideias. Também não é
essa sua função. Que tipo de imbecil confiaria cegamente na verdade? Antes, em lugar da
lucidez do mensageiro, me fosse confiado o dom hipnótico dos videntes. Meu pai
foi um grande vidente, e isso não chega a ser uma novidade. Vivo a espalhá-la
por onde passo. Meu pai nunca foi flor que se cheire. Todavia, o velho me ensinou o que significa realmente santidade. Santidade
falsa, debochada, egoísta, mas santidade. Santidade que mais tarde mostrou-se nitidamente
falsa, debochada e egoísta. Quando percebi o buraco de rato que meu pai se meteu, apaixonei-me duplamente. Pelo santo... e pelo demônio que havia nele. Inegavelmente, a hora e a vez do buraco de rato de qualquer homem é questão de tempo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Passamos a nos ver diariamente. Certo tempo, encontrava-o
quatro, cinco vezes por semana. Sobretudo em minha época de vadiagem goiana.
Vivia com o pouco que restava de minha vida de jogador de pôquer e com o que
minha família depositava na conta. O suficiente – não mais. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Embora dissesse o contrário, Rogério era um homem de sorte. Era
um escritor em guerra contra o mundo, embora o mundo não fosse sequer um
adversário difícil de bater, mas um lutador que se recusava a lutar. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Cara, eu não sinto saudade de nada – ele começava. – Eu só
acho que a vida podia ser menos parada. Às vezes eu até consigo alcançar
isso... esse movimento... sabe? Mas todo movimento estanca. Eu não preciso
batalhar nada. Eu tenho tudo na porra das mãos. Talvez seja isso boa parte do
tédio que habita a merda desse décimo sétimo andar. Se eu quero salmão, eu vou
lá e compro. Se eu quero beber um uísque caro, eu vou lá e bebo. Dinheiro não é
problema. Se dinheiro fosse problema, quem sabe eu fosse mais feliz. Mas não é
essa a questão. Eu já fui um cara feliz, um cara normalzão. Eu me pego
imaginando o tempo que eu trabalhava no escritório de contabilidade e eu até
acreditava que aquele escritório iria pra frente. Você tá me entendendo? Eu
acreditava, cara, seja lá no que fosse! Eu acreditava na vida comum, eu
acreditava que fosse possível viver. Mas o foda é que eu não vivia. Chegou um
tempo em que cansei de tudo. Dos amigos, da família, da cocaína, do trabalho,
da cidade, e tudo pesou sobre mim como se eu fosse uma barata suportando o peso
de um elefante de aço. Eu chegava em casa de manhã travadaço de pó e via minha
mãe, minha irmã e minha sobrinha tomando café, e era como se eu houvesse
chegado de uma guerra estúpida. Eu não queria nada, exceto distancia daquilo. À
noite, eu me trancava no quarto e a guerra continuava. O barulho era terrível!
Você tem ideia do barulho que faz uma guerra? Ainda mais uma guerra imaginária?
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu lhe observava grunhir & grunhir e sua voz era o
gemido bêbado de um gárgula no topo de uma igreja em ruínas, no topo de uma
igreja em ruínas numa cidade abandonada, no topo de uma igreja em ruínas numa
cidade abandonada presa a uma Era fria e esquecida da vida humana. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Chegara a Goiânia em petição de miséria. Viciado, esfolado,
sem um puto no bolso, abanando o próprio rabo. Desembarcara para o matrimonio
com Virginia – que por sinal era sua prima –, boa e solitária o suficiente para
lhe receber de braços e bolsos abertos. Estabilizado em Goiânia, conquistou dos
céus o que a vida, por vezes, demora a ofertar a maioria dos homens: tempo para
escrever, uma mulher para deitar e o anonimato numa cidade desconhecida e
parada. Não havia do que se queixar. Mas ainda era um náufrago achafundando
numa civilização aquém de seus anseios. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Estava a escrever um livro, um diário de arabescos, sobre o
completo e absurdo tédio: Parlamintite. Queria, entre outras coisas, reproduzir
o silêncio da vida comum, porque acreditava ter descoberto a causa de todos os
abismos do mundo: a banalidade, o cotidiano... esse massacre a céu aberto
repetido a exaustão todos os dias da terra. Era um apaixonado pelas engrenagens
da vida comum, ordinária. Afinal, era essa a vida que levava. Engaiolado no
apartamento. Aturdido às três e meia da tarde no bar da esquina. Lendo seus Dostoievskis
e maldizendo a si, ao mundo, a esperança e tudo mais que soasse convencional e,
segundo ele, “a tudo que um dia tentou me destruir”. Em lugar de ser destruído
por outros, destruía-se ele mesmo. Uma
escolha sábia para quem tinha 33 e nenhum patrimônio. Nem carro, casa, moto,
uma bicicleta que fosse. Em seus grandes momentos de insatisfação, fascinava-se
com a vida na rua:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Se a Virginia um dia me largar, eu vou morar na rua. Eu
penso muito nisso, cara. Viver na rua, não sei fazendo o quê. Dormindo em
praça, catando papelão, não sei. Mas a rua é a melhor opção. Você acha que eu
tenho jeito pra voltar pra casa da minha mãe? Morar com minha irmã? Só a rua
pode me absorver. Ou você acha que eu não sei me virar? – perguntava-me como se
eu duvidasse de toda merda encalacrada que ele viveu até ser abduzido pelo
vidão goiano. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Virginia lhe dera mais que estabilidade e um teto. Dera-lhe a
chance de mergulhar na escrita, de escrever pra valer. Uma cadeira, lápis e papel. Material para
embrutecer um Deus e comida o bastante para engordá-lo como um porco rosa e
peludo. Por outro lado, Virginia não lhe cobrava “resultado”. Não lhe cobrava
que fizesse às vezes de escritor, que vomitasse o que tivesse de vomitar e
ganhasse logo o tal concurso literário. Pelo contrário, deixava-o em paz com o
tédio, com as vacas, com os arranha-céus goianos. No fundo, ela queria o amor.
Queria, também, a sanidade de uma vida a dois. Não era uma mecenas, mas uma
amante cega e satisfeita. De certo, acreditava que cedo ou tarde ganharia algum
crédito pelas grandes obras do primo-marido. Acreditava nele como se acredita
num santo louco e histérico a anunciar o fim de todos os mistérios. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu amo Virginía, cara. Mas, acima de tudo, eu não acredito
no amor. O amor é exigir muito do outro. É possuir e eu não gosto de posses, meu camarada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Você ama e não acredita no amor?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Porra, aquele que pertence ao outro é muito pouco de si.
Enfim... <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Arregimentamos alguns fracassos em comum. Planejamos montar
uma peça. Fracasso. Depois, gravamos um curta-metragem que deveria ter três
minutos e acabou em dezessete minutos e quarenta segundos, com Rogério
desesperado e dramático a reclamar da edição. Por fim, a grande cagada:
montamos um jornal alternativo. O jornal até que começou bem. Ideias, ideias,
ideias. Mas, entre outras coisas, Rogério Medice é o maior perito em
autosabotagem da face da terra. Após um chilique de insatisfação homérica com
todos os colaboradores do jornal, da fotografa ao diagramador, Rogério e eu
chegamos a conclusão que, juntos, somos bem piores do que separados. Largamos
mão de projetos, ambições, gentalharada em comum e etc. Passamos uns bons meses
sem nos encontrar, em rigoroso voto de silêncio. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por puro acaso, meses depois, nos batemos numa locadora de
filmes. Quando o avistei, perdi a voz. Cheguei muito próximo dele e gaguejei
algumas palavras incompreensíveis: <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– E aí, preciso te falar uma coisa urgente – eu disse. Não
havia coisa urgente porra nenhuma, mas foi o que me veio a cabeça. Tiramos de
lá pro bar mais próximo. No bar, o de sempre: enchemos a cara, regurgitamos e entre
piadas e filosofias de refugiados, reconciliamo-nos de um distanciamento que
nunca aconteceu de fato. De um distanciamento que nunca aconteceu e que acontecerá
– porque é assim que as coisas são... simplesmente. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por vezes, acusava-me de perseguir a escrita: – Diferente de
você, eu só escrevo quando preciso. Só escrevo quando há essa cinza
incontrolável querendo sair de mim. Diferente de você, eu não quero nem sou um
escritor, eu apenas escrevo. Eu não sei como você consegue sentar todos os dias
e escrever, escrever ainda que não tenha nada a dizer. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Disciplinei-me – isso ao longo de anos – ao ponto de sentar
todos os dias e, ainda que não alcance nenhum resultado satisfatório,
continuar diante da máquina e: se há o que dizer, bom, se não há, melhor. Com Rogério, o processo era diferente. Ele sentava quando se sentia impulsionado (ou pressionado), com a mão coçando, e despejava seu vomito como se dele dependesse o pão de cada dia que não precisava ganhar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
De certa forma, eu precisava da amizade de Rogério. Conheci
uma caralhada de gente desde meu sepulcro goianio. Entre fezes e humanos, com
algum rigor esnobe, só havia Rogério em minha lista de contatos possíveis.
Setenta por cento do tempo, discutíamos literatura. O que escrever, o que fora
escrito, o que ler, o que fora lido, e todo o tipo de resenha que literatos
bêbados e desconhecidos tomam pra si. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Rogério se achava um grande conquistador, muito embora a
barriguinha proeminente e a boina de Pablo Neruda e sua inseparável bolsa
repleta de papeis e anotações – o que lhe conferia uma imagem de professor de História. Como conquistador, devia grande parte de seu
sucesso à mentira, ao mais sórdido e cambaleante jogo de mentiras. Se por um
lado era o solitário ranzinza e fazia questão de sê-lo, por outro implorava e
rastejava como um buldogue babão pela atenção e olhares alheios.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p><br /></div>
<div class="MsoNormal">
“A obrigação do escritor é com a verdade”, eu achava. Eu
dizia. Eu praticava. Eu firulava. Eu... estava enganado. Como quase sempre,
diga-se. A obrigação de todo escritor, faça chuva ou sol, é com a mentira.
Mentir é a forma de exercer dignidade do escritor. Talvez a única. É seu escudo e sua lança. Mentir
enquanto os outros sofrem. Mentir enquanto as missas são rezadas. Mentir
enquanto os epiléticos enceram o chão. Mentir enquanto os homens esmagam outros
homens. Se Blake acreditava em chegar ao paraíso através do inferno, é bem
possível que se possa alcançar a verdade através dela... da mentira. Porquanto,
nunca simpatizei com os mentirosos. Invejava-os, isso sim. E a inveja me
distanciava de todos eles. A inveja, diferente da mentira, é imprestável. Não
há utilidade para ela. Talvez por isso, aos doze, treze anos, minha primeira
admiração literária fora pelos confessionais. É possível dizer que quando um
leitor acredita que tudo dentro de um livro é verdade, pura e simples verdade, escritor e leitor adquirem uma proximidade só possível em momentos de inestimável
cumplicidade humana. Todavia, não é assim que é escrito um relato ficcional.
Não é assim, aliás, que nada é escrito. Está para nascer o homem habilitado a
nos transmitir a <i>verdade, a verdade</i>
de qualquer espécie – e não será ele um messias, tampouco um grande
escritor. Será preciso que surja uma nova linguagem para que nos entreguemos
sem estilo, sem métrica, sem razoabilidade, sem convenções, sem medo e
principalmente sem ambição. Uma linguagem divina e demoníaca. Talvez a
linguagem telepática de Rimbaud. Assim, quem sabe, quando esse dia chegar, quem
sabe uma alma interessada e estudiosa não tenha esses rascunhos em mãos e diga:
“Eis mais um esforço fracassado de nossos antepassados!” <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pode soar ridículo (tomara que soe!), mas eu sou um bom
espírita. Preocupo-me um bocado com meus amigos ateus. Só os tenho! Amigos
religiosos, nunca soube fazê-los. Ou são chatos em excesso ou concordam
excessivamente comigo – o que me aborrece fodidamente. Como disse, preocupo-me
com meus amigos ateus. Não é uma preocupação de vê-los condenados, não!... se
Deus for um cara realmente justo, haverá de convidá-los para uma show do Jimmy
Hendrix, não para um tribunal. Minha preocupação é quanto ao modo que meus
amigos deixarão seus corpos. Uma vez vi o mesmo do George pro Lennon, quando
dos cinco balaços. O George Harrison estava preocupado com o modo que o Lennon
deixou o corpo. Mas não vem ao caso. Preocupo-me, sim, com a forma que meus
amigos debutarão na nova vida. Sim, sou um homem da “nova vida”. Criado onde
fui criado, não haveria de ser diferente. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Façamos apenas um jogo psicológico, Rogério. Imagina aí se
você morre e sua alma, segundos depois, sai andando pra fora dele, recomeçando,
assim, uma vida nova, uma nova gama de sensações e existência. E aí, o que você
faz?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Não sei.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Como não sabe? É só uma representação.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– De verdade, não sei. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Larga de ser idiota. Apenas imagine a cena. Você está fora
do seu corpo e acaba de perceber que está morto. Ou melhor: que a vida não era
só a boa merda que você imaginava. E aí?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Acho que vou sentar na esquina e ficar observando as
coisas. Não sei mesmo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Por que você não larga o cu de medroso e responde de uma
vez?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sei lá, cara. É muita fantasia pro meu gosto. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Porra, é só um exercício. Não precisa fazer primeira
comunhão e entrar pra seita, feladaputa. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu acho a morte um lugar excepcional para se viver. Ainda
mais se for uma soneca eterna. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Qualquer pesadelo é melhor que o sono eterno. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sabe o que eu sinto falta? Eu sinto falta de antes de
nascer. Sacou? Eu queria saber o que eu era antes de nascer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Poupei-lhe minhas duzentas páginas de teoria da reencarnação
e finalizei a confecção do bequi. Acendi e passei. Ele tragou e passou de
volta. Baforei e toquei novamente. Ele arrematou e devolveu a pelota. Estávamos
chapados. Se alguma vez eu lhe fiz um favor, foi apresentá-lo decentemente à
maconha. De prima, desprezou a chapação. Dizia que tudo o que a maconha fazia
com ele era sono, e sono, e sono. Depois, pegou gosto pela coisa. Já bem
chapados, sentamos no sofá (o sofá possuía um furo de cigarro que eu deixara
numa visita anterior) e discutimos Nietzsche, bucetas passadas, futebol, seu
irmão mais velho que assumira o lugar do pai e nunca lhe demonstrou o menor
afeto sempre lhe interrogando com a voz cheia “RO-GE-RIO”, e meu irmão mais
novo que é como um filho para mim até porque eu estava no dia do seu nascimento
e em todo o resto onde eu lhe vi sofrer e crescer desordenadamente como só
crescemos na infância sem que eu pudesse fazer nada para reter o meu irmão
próximo a mim, e mais bucetas passadas, e nossas bucetas atuais, minha mulher
escritora histérica e sua mulher atleta calma e fumamos mais um pouco. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Rogério adormeceu no sofá e eu continuei mais algum tempo de
bico pra cima encarando o teto. Sou bastante paranoico, e a maconha tem me
tirado de tempo ultimamente. Nada muito grave, apenas alguns furos de bala em
minha cabecinha de ficcionista <i>too high.</i>
Olhei o céu estrelado e porra! essa cidade esse apartamento estão precisamente
2038 quilômetros de distancia da minha solar e dolorosa Natal, a cidade de meu
enterro... <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pensar que estou distante de casa me anima... e muito. É uma satisfação, uma liberdade que, ultimamente, tem morrido aos poucos, mas que ainda me é útil. Chamei um táxi. Levantei-me e aquele pedaço gordo desabado sobre o sofá me
lembrava, em parte, meu irmão mais velho. Uma forma diferente de irmão mais
velho; um irmão mais velho que precise tanto de mim quanto pode me oferecer.
Nesses momentos dou conta que quase todos os meus amigos são versões repensadas
de meus dois irmãos. Correlaciono-os deliberadamente. Na vida, não há nada mais
valioso que o tempo. Sendo assim, se você passa muito tempo ao lado de uma
pessoa, bem ou mal, parte de sua vida fica com ela. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Sacudo-lhe para dizer que estou de saída. Rogério Medice
está derrubado. Maconha e saquê. No fundo, Aldir Blanc canta uma melodia rota e
sem muita importância a essa hora da madrugada. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Rogério, Rogério...</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não há quem faça acordá-lo. Deixo-lhe entregue a morte, ou
ao sono profundo, que é como sonha a morte. Só de sacanagem, dou-lhe um soco no
estômago, para ver se acorda. Sem reação. Seu pai, se não me engano, morreu aos
quarenta e cinco. Em pouco tempo, eu penso, esse homem terá a idade do pai
morto. Superará a si e ao pai, numa matemática da vida que separa criador e
criação para todo sempre, até que o criador se esqueça da criatura e a criatura
já não saiba de onde veio.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-58822080118825183312014-01-08T08:01:00.001-08:002014-05-13T18:52:34.040-07:00A última luta de boxe da humanidade<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Durante
três ou quatro anos as lutas do Tyson foram uma religião lá em casa. Meu
pai colocava o despertador pra apitar, levantava meia hora antes da luta e
acordava meu irmão mais velho, João Maria. Meu irmão se incumbia de fazer o
café e passar manteiga nas torradinhas duras e velhas, porque alguma coisa
haveríamos de comer. Delicadamente, meu irmão mais velho me acordava. Era uma
situação importante, que exigia sigilo e concentração. De tão eufórico, eu
vencia o sono. Inegavelmente, Tyson faria o mesmo. Meu pai e meu irmão
regurgitavam de ódio, torpor. Por amor a eles, eu também regurgitava de ódio,
torpor.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br />
A maior madrugada de todas fora a de junho de 97.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">– Será que o Tyson consegue o cinturão de volta, pai?
– João Maria perguntou. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">– Mas é claro! Esse negão Hollywood não é o campeão
de direito, porra. Vai ser preciso matar o Tyson pra ser o campeão de direito.
Concorda comigo? <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">– Sim, pai, sim. Vai ser preciso matar o Tyson. –
meu irmão concordou. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Só de sacanagem, meu pai chamava o Holyfield de
Hollywood. Meu pai nunca gostou do Holyfield. Gostava, sim, do Tyson, que era
todo talento e fúria. Gostava do Tyson que dizia o que precisava em apenas um
round. Gostava do Tyson que era seco e rápido. Gostava do Tyson que não se
fazia de Deus, nem se imaginava ungido por Deus a fim de realizar uma grande
missão divina (como a maioria dos lutadores), muito embora meu pai fosse o
“ungido”, fosse o cara da missão divina. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">A luta começou e o Tyson mais parecia uma múmia.
Apático, lento, desgovernado. Meu pai apostara um engradado de cerveja com não
sei quem que o Tyson acabava a luta no primeiro round. O primeiro round se foi
e o Tyson continuou parado, incapaz sequer de ultrapassar a linha de cintura.
Meu pai e meu irmão fizeram cara de cu, embasbacados. Era um milagre às
avessas. Um milagre do demônio contra as forças do bem, contra o Tyson. Holyfield
acertou um direto na barriga do Tyson. Tyson avançou e caiu nos braços do
Holyfield. Evander Holyfield, então, passou a desferir cabeçadas na testa do
Tyson. O narrador da luta parecia, também, não acreditar no que estava
narrando. Era como se Jesus Cristo retornasse à terra e acabasse mais uma vez
derrotado na cruz, duvidando de si e do próprio pai. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">– Eu já sei, eu já sei! – meu pai gritou. – O Tyson
está a usar de uma estratégia arriscada. Ele vai cansar o Hollywood, que nem o
Ali contra o Foreman, e depois vai acabar com a raça desse preto miserável.
Feladaputa! Larga ele, Tyson, puta! Larga e come o queixo desse corno! Tá vendo
como o Hollywood deixa o queixo exposto? Feladaputa! Não se faz isso contra o
Mike Tyson, cara, não se faz. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></span></div>
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Mal meu pai fechou a
boca, o grande Mike Tyson abocanhou a orelha do canalha Evander Holyfield. O
sangue jorrou como de uma cascata. Tyson, transtornado, era um touro enfurecido
num mundo vermelho e desordenado, não um homem. Um mar de gente invadiu o
ringue. Curiosos, fãs, jornalistas, apostadores. Evander Holyfield parecia
ofendido, e com certeza alguns milhões mais rico. Meu irmão e meu pai, pálidos,
abriram a porta da cozinha e se recolheram ao quintal. Meu pai acendeu um
cigarro e meu irmão bebeu o último gole de café da garrafa térmica. Eu estava
com frio, muito frio, e não conseguia entender como meu pai, o grande médium,
apostara no lutador errado. </span></span>André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-38743441340017028072014-01-06T20:08:00.000-08:002018-03-22T22:28:49.057-07:00O vício do Sol em Prozac<div style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.45pt;">
<div style="text-align: left;">
<span style="font-family: "latha" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Foi tão difícil visitar aquela
cidade quanto abandoná-la. Há mais reverencia e medo – ao menos de minha parte –
em voltar ao <i>velho</i> do que em zarpar
todo cheio de esperança em direção ao <i>novo</i>.
Fatidicamente, estavam todos lá... fantasmas de um passado <i>revisited</i>, de um passado nada esquecido. Parentes, amigos,
conhecidos... espetacularmente misturados em esquinas, ruas, avenidas... Meu
primeiro impulso foi fugir. Esquecer tudo novamente no mesmo baú de alguns
minutos atrás. Todavia, era tarde demais para escapar, dar um passo atrás e pegar
o primeiro avião meia-volta-volver. O que eu demorei três anos em estado de
fuga tentando conquistar, perdi em dez minutos... se muito. Entreguei-me às
lágrimas como um garoto entorpecido, entre a cruz e a espada: entre o menino
calado que um dia eu encarnei e o adolescente histérico mais interessado no
êxtase que na sabedoria furreca (como são e devem ser os adolescentes, diga-se). De
alguma forma estranha e insensata, ainda sou/era o menino e o adolescente. Mas
não era esse o espetáculo que <i>Eles</i> queriam. Eles
queriam, exatamente, conhecer o novo André, o André que partiu e estava de
volta... melhorado, modernizado, experiente... O André fodidaço de histórias,
novidades, previsões, dores, piadas... Encabulado, dei-lhes
histórias, novidades, previsões nem tão confiáveis assim, dores e, sobretudo,
piadas. Piadas aos montes. Descobri, irremediavelmente, que eu não mudara porra
nenhuma – e se mudara, tratava-se de uma mudança deslocada, correndo o sério
risco de retroceder ao mínimo contato com o antigo, o velho, o esquecido. Não
deu outra: retrocedi. Desejei, por um segundo, nunca ter fugido ou nunca ter
voltado. Ademais, era preciso aparentar uma grande mudança para que não me
tomassem como um impostor. Do lado deles, sem que pudessem sequer suspeitar, embora
se tratasse de uma constatação muito simples, estavam todos naufragados no
mesmo passado que, silenciosamente, recriminavam em mim. Calei. Bebi cachaça.
Acendi um cigarro no outro. Fiz caras e bocas. Abraços burocráticos e beijocas secas. Gargalharam,
eu gargalhei, satisfizeram-se, e então o dia amanheceu, brega e melodramático
como só o nascer-do-sol... em Natal. Os poucos amigos que aguentaram bêbados e
corajosos até o começo do dia se foram e levaram consigo meio litro de uísque.
Os de minha casa caíram no sono e eu estava, enfim, novamente a sós com minha
cidade. De todos, o reencontro mais aguardado: Eu, A solidão e O mar. Chutei os
sapatos gastos e desci à praia. As ondas dançaram escorregadiamente e os primeiros
pássaros do sol sobrevoaram o oceano pálido em absoluta harmonia. Constatei que sim,
sim, eles estão certos, não há como refugiar-se naquilo que já não existe.
Definitivamente, como diz a canção, o novo sempre vence. As coisas morrem, ou
no mínimo envelhecem. Deitei na areia fofa da praia e quase adormeci. <o:p></o:p></span></div>
</div>
</div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8632946878250214812.post-78821137762060224322013-12-07T16:40:00.000-08:002015-02-07T18:35:28.653-08:00O místico doce da morte<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><span style="font-size: 15pt; line-height: 115%;">A noite perde</span><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">
a virgindade todos os dias. Sempre que o sol nasce como um grito encoleirado de
dor... uma máscara inviolável de luz que a tudo cobre e abicha. Nuvens alaranjadas.
Arranha-céus lambidos pela luz. Vira-latas mancos à cata do primeiro saco de
lixo do dia. O sol é a lua sem charme... uma tangerina gigante... uma bola de
futebol na marca do pênalti. São estúpidas as metáforas sobre o sol... rigorosamente, são
estúpidas todas as metáforas. Como um bom estúpido, faço-as com gosto. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><span style="font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Todavia, antes do sol,
a noite é virgem. Dentro da noite residem os animais velozes... os animais
voadores.... os animais que me interessam... os trabalhadores estropiados e
exaustos... os garçons de suor congelado... os alcoólatras paranoicos... os
lixeiros maratonistas... os mendigos depauperados... as putas de calçada com
suas pernas e seios a mostra... os lobisomens de sinaleiro... e uma porção de
viciados fodidos e insanos. Não há paternidade, nem maternidade dentro da
noite. Há, sim, um barulho de rádio ligado que ninguém sabe de onde veio nem
para onde vai. Há os carros que passam em disparada como relâmpagos na
imaginação de um cego. A vida dentro da noite engatinha silenciosa e sufocada.
Ninguém, nem por um minuto, arrisca dizer que um dia a noite acabará. O sol é
um presságio, <i>and no more</i>.</span><span style="font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Durante muito tempo...
só escrevia à noite. Apoiado em xícaras de café, contando os cigarros como um
fazendeiro conta suas vacas. Meus pais dormiam no quarto ao lado, e eu lhes
ouvia a respiração agitada. No meu quarto, o batuque das teclas emperradas do
computador e o assobio gelatinoso do mar. Raramente eu escrevia à máquina. O
barulho da máquina despertava meu pai, que logo começava a tossir. Meu pai
tinha – não sei se ainda tem – o sono leve e sensível. Quando o computador
estava enguiçado, o que era quase sempre, algum problema fodido com o software
ou hardware, eu escrevia à mão, o que era quase nunca. Detesto escrever à mão.
Quando escrevo à mão o tempo parece um adversário, e não um aliado. A redação
não acompanha o pensamento, o que é um problema seríssimo. Outros escritores já
se queixaram disso. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Em Natal, Rio Grande do
Norte, o sol nasce todos os dias pela primeira vez na América do Sul. Do lado
de cá do Equador, ninguém vê o sol antes do Rio Grande do Norte. O barulho dos
ônibus antes do nascer do dia é o sinal de que logo a vida cotidiana despertará
para o monstruoso caos, o genuíno caos, o triunfante caos. O que acontece à
noite não é o caos, mas o substrato do verdadeiro caos. O mundo está de pé. Os
vendedores de picolé. Os padeiros. As caixas de supermercado. Meus pais, irmãos
e vizinhos. Ouvia-os tomar café. Ouvia-os disputar uma vaga no banheiro. Ouvia-os defecar a primeira cagada da segunda-feira <i>sun
shine</i> – e não sem prazer eu os ouvia voltar à vida. Lentamente, fechava a
janela do quarto, ligava o ventilador Arno apoiado num tamborete de metal em
frente à cama e... dormia. Estava contente por ter trabalhado duro a noite
inteira. Apesar da fama de vagabundo, apesar da ideia de ser um vagabundo me
excitar como nenhuma outra, não era assim que eu me via. Escrevia e escrevia. Relia
o trabalho de uma noite inteira pouco antes de dormir. Ainda que eu não gostasse
do resultado, meu corpo relaxava e eu podia, enfim, descansar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">O mundo lá fora só
fazia sentido para mim se desabitado, ou mal e porcamente habitado. As ruas de
meu bairro, pela manhã, se enchiam de carros estacionados. O entra e sai de
carros me colocava paranoico, aluado mesmo. Se um único carro desfilando pela
avenida é um consolo imaginário, uma centena deles é sinal de que a vida está
inchada e podre. À noite, por outro lado, a rua me seduzia como um rato se
deixa seduzir por um bueiro. Os lixeiros árabes com suas camisas plantadas na
cabeça como burcas. Os travestis turbinados que, por segurança, só andam em
bando. Os maconheiros magricelas em roupas de verão e bonés em busca de uma
vitamina mais forte, engatinhando no mundo da cocaína. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Há gente de verdade nos
antros de sofrimento, e uma incrível fonte de prazer e aprendizado quando se é
um visitante nesses lugares sombrios e esquecidos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Meu melhor amigo na
infância chamava-se Fernão. Minha mãe e a mãe dele também eram amigas de
infância, e davam aula juntas num colégio publico formador de aberrações. Eu
sentia Fernão mais próximo de mim do que meus próprios irmãos. O que não me
faltam são irmãos. Tenho sete. Dois do primeiro casamento de meu pai, e outros
cinco entre meu santíssimo pai e diviníssima mãe. Nunca tive uma relação suficientemente intima e sincera com nenhum de meus irmãos. Nenhum deles nunca dividiu comigo as primeiras porradas da vida. Fernão, entretanto, me tinha no bolso. Salvara-me tantas
vezes que se sentia à vontade em me sugar de todas as formas possíveis. Eu me
sentia à vontade em ser sugado de todas as formas possíveis. Ele não tinha pai,
e sua mãe, a tal amiga de minha mãe, não passava de uma puta viciada em machos
etílicos e surras etílicas. Fernão é o que a sociedade moderna chama de “garoto
transtornado”, criado sem pai, entregue às loucuras melodramáticas e à
indiferença da mãe ninfomaníaca. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Engendramos na maconha
aos treze, quatorze. Quando demos o primeiro passo para cocaína, Fernão se
empolgou. Achara a resposta de uma vida. O êxtase e a felicidade que lhes fora
subtraído na infância. Diferente de Fernão, não me empolguei o suficiente. Completei
um curto período de dependência, e só. Apenas um susto. Não tenho colhões o
suficiente para me viciar, e se tenho, me falta dedicação. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Sempre me foi bastante
claro o custo benefício da cocaína. Se cheirava duas, três horinhas – quarenta,
cinquenta pilas de pó –, havia outras cinco, seis longas horas de exausta
depressão. Sem contar a insônia que se iniciava à boca da madrugada e
atravessava comigo o resto do dia. Isso desde a primeira vez que mandei um
raiozinho. Não havia diversão o suficiente nessa porra para me fisgar. Se não
fosse a depressão, é possível que caísse com gosto. Já Fernão estava tão
acostumado com a merda que uma simples sessão depressiva não lhe fazia nem cócegas.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Foi nesse período que
perdemos o contato diário. Ele arrumou uns parças narigudos do centro da
cidade, e cheirava todas as noites, sem exceção. O problema da cocaína está no
comportamento depressivo prolongado pós-ação, que é o meu caso, ou na falta de
dinheiro, caso de Fernão. A falta de dinheiro é o maior dos toletes. Quando se
cheira oito, noves noites seguidas, as próximas oito ou noves noites sem
cocaína transformam-se num inferninho privativo e desempolgado. Fernão devia
aquilo não ao vício, mas a si. Sem dinheiro, virava-se como podia. Lavava
carros e assaltava os toca-fitas dos carros que lavava. Pastorava carros e
metia os toca-fitas dos carros que pastorava. Ou só estourava o vidro de um
carro qualquer e fugia com o toca-fitas. Especializou-se em toca-fitas. E
havia, claro, a fonte clássica de dinheiro dos cacainômanos: a bolsa da mama. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Certa tarde, a mãe de
Fernão apareceu lá em casa. Estava de short jeans, blusa cavada e descalça.
Tinha uma enorme mancha roxa na bochecha. Transtornada, atirou-se nos braços de
minha mãe e chorou como uma garotinha. Minha mãe chorou junto. As duas pareciam
amigas, amigas de verdade. Encostei a orelha e ouvi como pude o que elas
conversavam. Fernão, óbvio, atacou a mãe. Roubou-lhe o salário do mês. Minha
mãe chamou meu pai, que estava na cozinha, torrando o saco trabalhador de
cachaça. Meu pai fez um cheque e a mãe de Fernão recuperou-se como se tocada
por Cristo. Dinheiro emprestado tem esse poder nas pessoas. Ainda mais quando
elas sabem que não precisam saldar o empréstimo tão cedo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Passamos a andar em
grupos diferentes. Fernão pertencia à patota viciada, aos “quebra-nozes”, como
eram conhecidos os nariguebas sem um puto. Eu frequentava os maconheiros do
centrão, “jamaicoboys”, como nós (eles) erámos chamados. Nunca tive lá grande
sentimento corporativista, muito menos quando se trata de maco-clubismo. Mas
andar com os jamaicoboys facilitava a vida de qualquer maconheiro. É fumo que
não acaba mais. De todas as qualidades e sabores. Maconha se reparte. Se <i>um</i> está sem maconha, o <i>outro</i> cobre. Se o <i>outro</i> tá em baixa, o <i>um</i>
cobre. Maconha se divide. Maconha é a mais Franciscana de todas as drogas. Os
maconheiros nutrem aquilo que chamo de bequi-da-compaixão. Ao passo que com a cocaína
não acontece da mesma forma, nem poderia. Aquela porra custa uma nota e quanto
mais se tem, mais se quer. Não há ponto de estafa na cocaína – e se há, é um
ponto demasiado alto e perigoso para que se consiga vivê-lo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Fernão não podia mais
voltar para casa. Se voltasse, o atual comedor da mama, um PM aposentado fã de
um uisquinho, foder-lhe-ia no tabefe. Sem contar que a mãe lhe queria pelas
costas. Foi morar na Praça André de Albuquerque, a Woodstock a céu aberto dos
junkies natalenses. Juntou-se a crème de la créme dos viciados entregues à
miséria. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Certa noite, Fernão
apareceu lá em casa. Quando o interfone tocou, eram três da madruga. Eu
trabalhava naquilo que seria meu segundo livro, um romance perdido num HD
queimado. Um livro em primeira pessoa que narrava a vida de um cara criado
dentro de um cabaré. Criado pelas putas, assim como Mogli fora criado pelos
ursos, ou lobos, vai se saber. Havia acabado de lançar meu primeiro livro, O
Oxum da rua de trás, um livro de contos, e me julgava, sem sacanagem, um grande
escritor. Eu era um pobre-diabo, mas essa informação ainda me era desconhecida.
Morava com meus pais, tinha dezessete anos e já um livro. Imaginava-me Rimbaud,
para dizer o mínimo. Estava com o cu cheio de grana. Cheio de grana que eu digo
são dois mil, dois mil e quinhentos reais. Uma graninha nada mal para quem tem
dezessete anos e está a vinte minutos da orla mais cara do litoral Nordestino. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Desci ao encontro de Fernão. Ele estava na calçada.
Pés e mãos enferrujadas. Não tomava um banho há dias. O cabelo parecia um capacete,
de tão duro e impermeável. Fernão sorriu, como se tivesse numa boa. Sorri de
volta. Abriu os braços e lançou-me a possibilidade de um abraço. Foda-se, eu
pensei, se não abraçá-lo agora o sujo sou eu. Abraçamo-nos. Perguntou como eu
estava. Respondi que estava muito bem, obrigado. Escrevendo como nunca. Por
falar nisso, tenho umas histórias que você poderia escrever, ele retrucou.
Aposto que sim, eu falei, e perguntei como ele estava, como se não soubesse o
tipo de merda que ele estava passando. Respondeu com um sorriso, timidamente.
Disse estar com pressa. Uma pressa fodida. Pediu-me cem reais. Precisava pagar
um trafica. O trafica chamava-se Olho Seco. Olho Seco era um pé-de-chinelo, mas
um chinelo perigoso. Há traficantes que só trabalham com a high. Passam para os
playbas e vivem de carrão topeteando na zona litorânea. Há, por outro lado, os
traficas do centro, que circundam as sombras da madrugada e são como macacos de
galho em galho, rua em rua, avenida em avenida. Olho Seco era desses. Olho
Seco nasceu com apenas um olho, daí o apelido. Fernão sorria. Esplendorosamente
sorria. Um riso cínico, desinteressado. Parecia alheio ao mundo e ao vento frio
que soprava do mar, o que naturalmente não passava de uma grandessíssima
simulação. Sorri de volta. Sorri e menti. Disse que não, não tenho um puto,
Fernão. Pensei que se arranjasse o dinheiro agora, ele viria amanhã, e depois,
e depois. Não importaria quantos nãos eu lhe desse, ele continuaria vindo. Os
viciados em cocaína tem pouquíssima imaginação e memória curtíssima. Esquecem
ou inventam seus problemas ao bel prazer.</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Não, foi minha
resposta. Fernão sabia que eu estava mentindo. Repetiu o pedido, como se um
novo pedido demovesse-me da ideia. Respondi que... Se eu tivesse, brother, estaria
em suas mãos, você sabe. Ele não acreditou, mas continuou sorrindo.
Despedimo-nos com um aperto de mão. Daqueles que terminam em soquinho. Deu as
costas e desapareceu dentro do barulho neurótico que faz o vento do Atlântico
nas costelas dos prédios descascados da grande cidade de Natal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">*** <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">Fernão e eu tínhamos um leva de amigos em comuns. Entre
eles, Derico. Derico tinha esse apelido porque era careca e sustentava um
rabo-de-cavalo ridículo da nuca até quase a bunda. Parecia o Derico,
saxofonista do programa do Jô. Apareceu lá em casa como se de posse de uma
grande novidade. Havia um morto estendido no calçadão da Praia do Meio.<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">– Adivinha quem é?<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">Como assim, eu perguntei.<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">– Fernão, porra. Todo furado de faca. Dizem que os caras
passaram o coitado por uma merreca de trinta pilas.<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">Foi uma questão de tempo até a mãe de Fernão pintar lá em
casa. Queria dinheiro para o funeral. Parecia ainda menos chocada que da última
vez. Pelo contrário, estava até aliviada. Mas precisava do dinheiro, então fez
uma ceninha rápida, conseguiu outro cheque e picou a mula.<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">Derico sentou-se em minha cama, apoiou o violão na perna e
tirou um solinho estúpido do Pink Floyd que ele estava treinando. <i>Time</i>, se não me engano. Tinha uma banda,
como a maioria dos retardados maconheiros de minha laia. Enquanto solava,
descreveu o corpo de Fernão:<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">– Disseram que o estômago dele tava todo na calçada,
acredita, bicho? E o cadáver todo cagado. Eu queria saber só se ele cagou antes
ou depois das facadas.<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">Eu não estava surpreso. Estava, sim, um pouco tonto.
Anestesiado com a ideia. A morte ainda não me era familiar. Derico, pelo
contrário, parecia tranquilo com a presença da morte. Tranquilo ao ponto de
reclamar da primeira corda desafinada do violão. Ou simplesmente estivesse
cagando e andando, o que era bem possível. <span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">Minha mãe veio me ver. Abraçou-me. Chorou tentando imaginar
a dor da amiga em si. A dor oca de perder um filho. Enxugou as lágrimas com as
costas enrugadas da mão e perguntou se eu não queria um terno de meu pai, um
daqueles pretos com listras, e quem sabe uma gravata vermelha, sugeriu.<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">– Pode ser, respondi.<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">Derico disse que não iria ao enterro. Não tinha roupa para
esse tipo de ocasião importante, e nem de cemitério gostava. E havia ensaio da
banda. Estúdio novo, sabecomé, batera novo, um mundo de novidades entra dia sai
dia, é foda. Guardou o violão e conferiu o relógio... estava na hora.
Atravessara a cidade apenas para me dar a notícia... apenas. Lamentou-se, sabia
que Fernão e eu éramos próximos, quase irmãos. Usou exatamente essas
palavras... "quase irmãos". <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">– Ah, continuou, você não tem um pedacinho aí que me salve?
Tô de baixa, bicho. Ensaiar de cara é mau, né?<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;">Fui até a última gaveta da escrivaninha, dei-lhe um pedaço
de maconha, cheirou o fumo, seus olhos incharam de felicidade e guardou a
rapadura prensada dentro da cueca. Deu no pé, sem cerimônia.<span style="font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">***<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Não houve velório. O
cheque de meu pai chegou para o enterro e mais nada. O enterro aconteceu às dez
da matina do dia seguinte, debaixo de um solzão tórrido. A mãe e o padrasto
estavam de óculos escuros, um pouco enfadados, apoiados numa lápide escura de mármore. Não mais que vinte, trinta pessoas... igualmente enfadadas. Entre eles, minha mãe e eu. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Uma velha gorda e suada, não sei
se parente ou conhecida da família, ameaçou desmaiar e foi levada às pressas até o banco traseiro de um Fiat Uno azul estacionado a poucos metros da
sepultura. Minha mãe e eu cumprimentamos a mãe de Fernão, que sacou os óculos e os pendurou no decote da blusa negra. As pessoas não usam óculos para esconder a dor, mas a falta dela. Perguntou-me a idade. Embasbacado, não respondi. Minha mãe respondeu por mim: </span></span><br />
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 16px; line-height: 18px;">– Dezessete. </span><br />
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 16px; line-height: 18px;">– Uma criança, meu Deus, uma criança... igualzinho meu Fernão.</span><br />
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><span style="font-size: 16px; line-height: 18px;"><br /></span>
<span style="font-size: 16px; line-height: 18px;">O caixão desceu. As pessoas bateram palmas. Os coveiros lacraram a cova com cimento. As pessoas fugiram atazanadas do sol. Já não havia mais caixão. </span></span><br />
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 16px; line-height: 18px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Minha mãe chamou um
táxi. <span style="background: white;">Enquanto esperávamos o táxi à entrada do
cemitério, alisou-me os cabelos com seus dedos finos e pontiagudos e disse o quanto o tempo passa depressa, que a vida é hoje e não é amanhã, que Deus há de ser bondoso com Fernão, meu Deus, há de ser, há de ser, e disse também que nada acontece por acaso</span>. Estava contente em não ser ela a mãe a chorar o filho morto. Obviamente, eu
também estava contente em não ser o filho morto. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">– É sempre bom tomar um
banho depois de ir ao cemitério, André – advertiu-me.</span><br />
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Sentei no banco da frente. O taxista perguntou para onde. Minha mãe lhe passou o endereço e
o taxista retrucou se havia algum caminho de nossa preferência, uma avenida, um bairro, pelo viaduto ou pela orla, senhora? Minha mãe
respondeu não importa, o senhor que sabe, e o taxista escolheu o caminho mais longo e engarrafado
possível. </span></div>
</div>
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
André Rodrigueshttp://www.blogger.com/profile/02326568926872498368noreply@blogger.com1