sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Quando eu comi a noiva de Deus

Há pouco mais de dois anos eles estavam separados. Ela, Sônia, ele, Allan, o gênio, o grande escritor. O homem capaz de lutar a melhor luta em condições deploráveis. Ginga, coragem e um soco único. O autor de Não Fale de Cintia. Ele dera um pé na bunda de Sonia e desde então, segundo dizem, deixou de escrever. Vive em um cubículo em alguma favela paulista e leva uma dieta à base de churrasco de gato e vitamilho com salsicha. O grande escritor.

Reza a lenda que ele limpa a bunda com cadernos da Folha de São Paulo.

Ela tentou suicídio duas vezes e, claro, escapou. Carrega duas cicatrizes bregas no pulso que são um tesão à parte. Tudo e mais um pouco buscando compensar a falta de bunda.

Aí começa a minha história. Numa livraria, sentados lado a lado, lendo o mesmo livro: Não Fale de Cintia. Ela puxou assunto e me deixou de pau duro: vestia uma camisa do Red Hot Chili Peppers e já lera todo Dostoievski. Mas o seu preferido era Bataille. Ela me comprou A história do olho aquele dia. Imitou a assinatura do francês na contracapa e anotou seu telefone.

- Me liga, tá?

Saímos outras quatro vezes antes do primeiro motelzinho. As quatro vezes ela se queixou da menopausa e me contou a respeito do grande escritor. O dia em que Allan dormiu com gêmeas siamesas. O dia em que Allan vomitou no comissário de bordo e foi preso pela Interpol. O dia em que Allan brigou com cinco caras e fraturou a panturrilha. O dia em que Allan recusara um importante prêmio literário por capricho. O dia em que Allan a comeu sete vezes na mesma noite, sem camisinha e com manteiga em lugar de vaselina.

- Nunca trepo com camisinha, benhê.

Nesse ritmo de quarta-feira de cinzas, os trovões tomavam a cor de duas bolas azedas de sorvete de cajá. O mar parecia, a vista acostumada, um tabuleiro de xadrez. Nossa quarta saída fora pra tomar sorvete de cajá na praia. Em dia de chuva.

Dito isso, sua buceta tinha a força de Hamlet e seu monólogo aborrecido. Seu grelo gigantesco roçava a cabeça do meu pau e eu podia sentir o cheiro e a maciez do gozo de Deus em suas entranhas.

- Nunca trepo com camisinha, benhê.

A verdade nos parecia uma brincadeira estúpida para amadores. Ela citava Tom Jobim, enchíamos a banheira do motel e trepávamos duas vezes seguidas. Para trepar, deixávamos o rádio ligado e parecia que o Cristo e os radialistas analfabetos de Natal conspiravam a nosso favor e então era anunciado “Wave, Tom Jobim.”

Ela bebia Vodka com Guaraná e eu Whisky com Fanta.

“Agora, Amor meu grande Amor, Angela Rô Rô.”

Quando anoitecia conversávamos sentados no chão – dessa vez bebendo no gargalo e sem qualquer mistura. Fumávamos o mesmo cigarro. Ela tragava e me passava o cigarro, eu tragava e lhe passava o cigarro.

Ela me contava de sua infância. E dos três anos e meio em que foi a noiva do grande escritor.

Quando gozávamos eu pensava na buceta que um dia pertenceu a ele e ela pensava nele. Nossas faces coladas eram incapazes de enxergar o outro. Mudos, com a água da banheira a cobrir nossos corpos, fingíamos acreditar em-sabe-deus-o-quê e improvisávamos a melhor imagem possível para sair pela primeira tangente que encontrássemos: éramos donos de algumas alucinações, incluindo aí a culpa e o arrependimento de metê-lo, o grande escritor, Deus em pessoa (dilacerado em alguma favela paulista uma hora dessas, bebendo à merda do mundo e sua obra incompreendida), no meio de tanta trepada dissimulada e Vodka vagabunda. O trivial nos comia a alma e no caso de Sônia, a alma e o rabo.

Belchior era um santo remédio.

“Como nossos pais, Belchior.”

Ela cantava junto e sempre escorregava na hora do “das coisas que aprendi nos discos”. Sonia dizia “das coisas que aprendi e nos vimos.”

- O certó é “nos discos”, Sonia.

- Como?

- Deixa pra lá.

Certa vez eu citei Hemingway. Ela me disse que Hemingway era o preferido dele, o homem que ensinou Deus a andar.

- Ele deixou a barba crescer em homenagem ao Hemingway. Ele não peidava sem lembrar do Hemingway. Tanto que deixou a barba crescer, saca? Adora Hemingway. Deus do céu! Como aquele homem amava o merda do Hemingway!”

- Quem sabe eu também não faça o mesmo?”

- Não, não faça isso. Não venda sua alma como fez aquele cretino chupador de pica do Hemingway.”

Servi-a de mais um copo de vodka e fiz menção em encher a banheira.

- Quente ou morna?

- Ele só queria a minha buceta pra depois escrever sobre ela. Dissecar-me como o cadáver de suas frustrações de punheteiro poliglota!

- Não acha melhor ligar a Hidromassagem?

- Eu preferiria matar a beijar aquela boca de chupador de rola novamente!

“E agora, Valentia de um homem, Benito de Paula.”

- Você gosta de Benito?

- Que tal a gente ir pra banheira?

- Claro.

Ela se aproximou e tocou o meu pau. Automaticamente, bati continência. O relógio marcava duas horas da manhã e após cinco trepadas, meu pau ainda estava em alerta. Ela se ajoelhou e eu pensei em Não Fale de Cintia, o clássico do grande escritor, do ex-noivo comedor de vitamilho com salsicha... De Deus. Lembrei-me de Sergei Arinos, o personagem principal e cheguei mesmo a chorar. Chorei, mas gozei. Foda-se. Não deixei que ela reparasse.

Ela escovou os dentes e fez gargarejo com um pouco de Vodka. Sorrimos. Estava na hora. Mijei na banheira. Depois tomamos banho e ela pagou a conta. Comprei uma camisinha de chocolate no stand do motel.

- Que foi? Vai trepar com outra? Porque eu não trepo com camisinha, benhê, você sabe.

No estacionamento do motel ela ainda me contou duas ou três histórias. Algo relacionado a uma boneca que ela ganhou de aniversário de cinco anos. Isso em 1974. Presente de uma tia. Uma tia que era cafetina em Guarulhos e hoje mora no Recife. Devo ter sorrido da história.

Perguntei-me se ele, em busca de seu anseio nobre a respeito da vida e de todo o resto, sorriu quando ela lhe contou a mesma história pela primeira vez.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Atire e olhe o céu

Ou se entrega, ou vou te tratar que nem um burro, seu jegue, disse Cosme. Cosme era o meu tio. Morávamos na roça, numa cidadezinha chamada Ciunêto, colada à João Pessoa. Eu tinha seis anos de idade. Meus pais morreram afogados e eu vivia com meu tio e minha avó. Ciunêto era metade do mundo quando eu tinha seis anos, a outra metade era a cidade grande, “onde os bastardos vão para a cadeia”, segundo meu tio. O horizonte aberto de todas os pontos possíveis de Ciunêto, dois mil metros acima do nível do mar, ladeiras do começo do século XX interligando fazendas decadentes ao centro podre e deteriorado da cidade. Peças de carne expostas em arames a céu aberto, um batalhão de moscas decolando e pousando.

945 habitantes imundos, destituídos de uma cooperativa e sem educação, minha avó dizia, e logo depois me puxava para o alpendre da casa e contava histórias de Lobisomem e Caipora, até que eu me contentasse com as surras diurnas do meu tio e descobrisse o extraordinário: Que Deus era um tolo capaz de inventar Caiporas e Lobisomens.

A Caipora, ela continuou, faz um X nas costas de quem lhe nega fumo, e depois come com farinha as tripas das crianças pestilentas como você.

Meu tio chegou com o homem amarrado, banhado em sangue, socando a cara e chutando o rabo do infeliz.

Ou se entrega, ou vou te tratar que nem um burro, seu jegue.

Fecha a porta da cozinha, André.

Bati a porta da cozinha, meu tio reclamou do barulho e chutou o saco do infeliz. Agora o infeliz tinha nome. Emanuel. Toda vez que chutava seu saco, meu tio gritava “E agora, Emanuel, gozou? Não vai dizer?”

Meu tio não queira que minha avó, sua mãe, escutasse a discussão. Minha avó passava o dia inteiro deitada, dormindo ou rezando. À noite saía para o alpendre, contava suas histórias e falava mal dos habitantes de Ciunêto. Alguém que ela não via há dez ou doze anos.

A Marcelina, minha avó começava, que mora na rua setenta, é uma sirigaita. Enganou o marido e foi pega com aquela coisa que Deus condena na boca. Chupando o Pedro, golpistazinho fugido da capital, que mora ao lado do Padre Alcebíades, outro salafrário.

Marcelina estava morta e o padre Alcebíades não comandava a paróquia desde a década de setenta, quando foi eleito prefeito e quatro anos depois nomeado Bispo, com passagem só de ida para Florianópolis, onde uma casa com piscina, crucifixo e TV à cabo o esperava.

Vez ou outra alguém desmentia minha avó. Então ela encarava com profundo desgosto o horizonte de Ciunêto do alpendre e repetia todas as ofensas do mesmo modo. A Marcelina era puta, mulher da vida, o Padre Alcebíades um pederasta, verdadeira bicha de batina, e o Pedro um ladrãozinho de merda. De merda, e ainda mais fugitivo da capital, um pulha, ela fazia questão em repetir, noite após noite, eu lhe pedia a benção e ela se retirava, estava com sono.

***

Meu tio pegou o homem pelo pescoço e enfiou uma faca dentro do seu nariz. Além de ter um caminhão e as terras da fazenda, meu tio ganhava dinheiro mesmo com ouro. O Emanuel roubara duzentos gramas de ouro bruto e meu tio queria o ouro de volta, ou então mais uma morte para se gabar entre latinhas esmagadas de Kaiser e uma vitrola preta levando Wando, o colecionador de calcinhas e cantor preferido do meu tio.

Ele cortou um pedaço do nariz do Emanuel e atirou a carne para o cachorro, que também se chamava Wando.

Pra aprender, seu bosta. Anda, vomita logo, diz, porra, onde tá o ouro?

Em canto nenhum, em canto nenhum, ele agonizava.

André.

Oi, tio.

Quer chutar a cara dele?

Não, senhor.

Chuta.

Não, senhor.

Olha, chutar a cara de um homem é como... trepar. Você tem idade pra trepar? Não. Nem deve saber o que é buceta, bacalhau, passar a língua num grelo. O que é chupar buceta? Você sabe seu pirralho? Sabe? Então chuta a cara dele.

Meu tio deu um soco na barriga do homem, ele deitou de dor e eu chutei sua cara. Um chute fraco, eu tinha seis anos e meu tio me mandou dar outro chute. Chutei novamente e nada. Meu chute era fraco, uma vergonha. Tem que sair sangue, meu tio gritava. Chutei outra vez. Agora no nariz, onde meu tio arrancara um pedaço. Dessa vez um chute de verdade. Começou a jorrar sangue do rosto do homem, meu tio disse que o sangue saindo daquele jeito parecia um chafariz.

O que é chafariz, tio?

Passou a mão em minha cabeça e riu. Sacou o revolver e fez um sinal com a mão pra eu me afastar.

Quando eu atirar, vai fazer barulho. Cuidado pra não sair correndo. Criança tem mania de sair correndo quando escuta disparo de bala. Ainda mais pela primeira vez. Fica quieto, entendeu?

Você vai atirar agora, tio?

Cala a boca e escuta.

Tremi quando ouvi o barulho, meus dentes rangeram e eu quis correr. Meu tio acertou um balaço no joelho. Antes de matar o cara ele queria apavorá-lo com a idéia de ficar aleijado.

Entendeu, seu merda? Agora você é um aleijado. Aleijado é tudo come bosta. Vai virar esmole e tomar no cu. Vai se mudar pra cidade grande e morar em banco de praça, e cuspia na cara do sujeito.

Emanuel se contorcia em espasmos demorados, mas já não chorava. A cara parecia a de um alienígena com a areia grudada no sangue coagulado.

Fala, última chance, cadê a porra fodida desse ouro? Tá achando o quê, que Deus me criou perfeito?

Emanuel não tinha mais forças nem para dizer que não, não sou eu o ladrão e não tem ouro nenhum. Só cuspia. E pedia água. Pediu quatro vezes. Na terceira eu perguntei ao meu tio se era pra pegar água mesmo, e se quente ou da geladeira. Ele disse que só se eu fosse um maricas. Você é um maricas?

Não, tio.

Uma caminhonete entrou pelos fundos da fazenda, meu tio deu com a mão para o sujeito que dirigia e começou a tirar a roupa do Emanuel.

Emanuel... Emanuel... você é um merda mesmo, meu tio dizia. O ouro vai morrer com o teu corpo, seu come bosta.

Emanuel começou a ter uma convulsão. O homem na caminhonete desceu do carro e acendeu um cigarro. Perguntou por mim, que pivete é esse, se não tinha problema.

Meu sobrinho. Tem sangue de carniceiro.

E se o garoto der nos dentes?

Relaxa a piriquita, porra, é o meu sobrinho.

Meu tio encontrou um baseado no bolso da calça do Emanuel.

Olha, Fernandes, o filhodaputa é maconheiro ainda por cima.

Meu tio levou o cigarro de maconha à boca e acendeu riscando um fósforo na barra do sapato. Ele tinha amarrado um pedaço de caixa de fósforo no sapato. Foi a solução que ele aprendeu para andar como o Sartana. A Volta de Sartana, O Justiceiro, único filme que tio assistira no cinema.
André, tá vendo isso?

O que, tio?

É maconha. Se você fumar maconha um dia eu te meto a porrada.

Ele terminou o baseado e deu um tapão na minha cara. Eu rolei na areia e levantei, segurando o choro, achando ruim o cheiro da erva que ele baforava na minha cara.

Ouviu? Se fumar essa merda eu te arrebento, e cuspia a fumaça na minha cara.

Dois minutos depois, Emanuel parou com a convulsão, desmaiado, soluçando com a boca aberta. Meu tio puxou o revolver e descarregou as balas no corpo estirado.

Não tem graça quando eles não sentem o impacto do tiro, meu tio disse.

Ele e o homem arremessaram o corpo na parte de trás de caminhonete e meu tio reclamou do sol, da maconha que não presta pra esse tipo de coisa, tira toda a emoção e elogiou o carburador da caminhonete.

É um carburador pau pra toda obra. Gastei duzentos semana passada no reparo da caixa de marcha.

Caixa de marcha quando quebra é foda.

Bota foda nisso.

Meu tio e o homem entraram no carro, acenderam outro baseado e deram no pé. Eu fiquei sentado no quintal, admirando a mancha de sangue, querendo saber para onde o homem tinha ido agora que ele estava morto. Emanuel o nome dele. Escrevi e apaguei uma centena de vezes o nome Emanuel na areia. Emanuel.

Minha avó abriu a porta, perguntou se tinha chegado carta. Nunca chegava carta, mas minha avó queria saber todos os dias.

Eu disse que nada, não vi nada, vó.

Correios e telégrafos de merda, ela esbravejou.

Não tá na hora do chá, vó? O tio disse pra eu não esquecer o chá da senhora.
Correios e telégrafos de merda, e cuspiu outra vez.

Entramos, minha avó colocou a chaleira pra esquentar e sentou à mesa de carvalho da cozinha.
Arfou de cansaço, pôs o terço em volta do pescoço e olhou para o telhado velho, caindo aos pedaços.

Ela é feia e louca e velha, eu pensei.

Voltei ao quintal, fiquei de pé em frente à nódoa de sangue e atirei mirando a parte da mancha que eu imaginava ser a cabeça do Emanuel. Atirei usando minha mão esquerda como pistola, fazendo o som dos disparos com a boca. Atirei cinco vezes.

sábado, 29 de outubro de 2011

Daqui do alto

Visto do inferno, o céu é lindo. Debaixo da saia dela um larga camada de suor sabor perfume francês. Mal-me-queres e discos empilhados, aguçando a curiosidade. Como que sinfonias de lata, engraxates cheirando cola, apaixonando-se por cada garota de calça colada que passa em direção ao amontoado de lojas, som da água jorrando da fonte docilmente dançada pelos pombos, passarinhos chatos catando migalhas, ensaiando rasantes como um fulcker 100 louco bailando no céu verde do sertão.

Beijei-a. De pau duro, continuei sentado. Ela, sentada a guardar as sobras de uma trufa quente e machucada, linda. Levantamo-nos. Levou minha mão a sua buceta, empinou os pezinhos e então me beijou. Um dia no presente eu beijei o futuro. Não ela, que era o presente e o passado. Mas o futuro em seus lábios. Lábios atados e línguas pingando água gelada de uma garrafa de plástico que carregávamos. Retirando da garganta o açúcar grudado do algodão doce branco. Nuvens, ela dizia. Nuvens, sim, amor. Tudo o que quisermos em condições as mais loucas e menos deploráveis. Nuvens, sol, a chuva que se foi e veio de maneira imperceptível. Ela queria filmar um longa-preto-e-branco, Anna-Karina apontando o olhar perdido para o mesmo varal de lençóis do corredor do hotel. A megalomania que ela esconde atrás dos vestidos estampados e olhar de menininha. Passávamos fumando Marlboro em direção ao quarto. A dupla de amantes que se encontra e submerge em ritmo tênue, subindo e descendo escadas. Gosto de pensar que éramos uma dupla, que estávamos juntos porque assim o destino quis, e por um instante, ínfimo e imperceptível instante, esquecíamos-nos de nós em nome do amor, da junção das almas, esquecíamos-nos porque não interessava mais a individualidade, ser um não era o suficiente, e assim nos esquecíamos e éramos esquecidos.

O corredor da morte nos levava para a cama. Fodíamos, matávamos nosso filho no segundo andar do shopping, primeira loja à esquerda após as escadas rolantes. Fodíamos e fugíamos. Sem trocar a roupa de cama, claro. Achando graça no suor um do outro. Escovando os dentes ao mesmo tempo. Em minha cabeça saltavam notas de uma música trêmula e nova que eu parecia compor àquela hora - pura e diáfana ilusão. Com vodka ficaríamos melhor. Ao menos minhas mãos tremeriam menos. Mas não bebíamos. Repletos de medo do menor sinal de respiração dissonante, afundávamos na sobriedade. O pacto careta para vencer o mundo. Ou então decadência e elegância, e aí sim cairíamos/cairemos de cara na bebida. Valentes até a sétima dose e mais do que precavidos. Bonachões, por assim dizer.

Eu tento não ligar para a face dissoluta e rota do mundo. Cambada miserável, gente comum. Então enlaço sua mão a minha. Acho um modo seguro e desatento de caminhar na rua sem serenatas de Chopin na cabeça. Se é que Chopin compôs serenatas. Dessa vez prefiro Mozart. Esquivando-me da chatice e rachando os dentes ao som de Stones. Uma missão que me custaria a vida numa noite de domingo: suco de uva no supermercado. Tudo tão fácil que eu recolho as metáforas e sigo temeroso: a vida não é um filme com atores drogados, nem musicais da Broadway, nem livros chatos que nunca serão lidos. É preciso desconfiar, desconfiar sem descanso. Eu a amo. Leio meu horóscopo na banca de passagem e ele diz que preciso ‘tomar cuidado com as influências de Saturno no meu humor, sobretudo em fase de lua cheia’ e a porra toda. Eu digo que horóscopo é coisa de viado e caminho em direção ao hotel pensando em escrever um conto sobre quatro amigos que morrem no sertão após furarem o pneu do jipe. Anoto a idéia numa folha de caderno quando ela vai ao banheiro e decido que a idéia é uma merda, não serve. Amasso o papel e atiro no corredor que dá para a janela do quarto.

Acendo um cigarro assim que meto o corpo ao ar-livre. Sempre. Ela caminha distante. Que seja. Eu olho o céu distraído. Percebo que nunca caminhei assim na vida. Não daquele jeito. Liberdade bem no meio do pátio da prisão. Por mar ou por terra, fugir é o passatempo dos que decidem viver.

Pensando bem, literatura nunca levou ninguém a nada. Por isso é uma coisa boa de se abraçar. Morrendo verso em verso, qual um sambista da pesada, afundando em conhaques baratos, lotação cheia e uma porção de conhecidos usurpando o caminho de volta pra casa. Gente dispendiosa, mas gente necessária. Até certo ponto, claro, na melhor das hipóteses.

Dentro do avião, Natal parece a mesma massa disforme. Ruas intricadas, casarões arcaicos, prostitutas diurnas pegando sol. Alguns gringos dormem durante a madrugada. A fodança rola pela manhã. Toda a orla aberta. Fecho a janela do avião e abro um livro. O piloto tem problemas tentando pousar e dá meia volta. Vômito, Nossa Senhora, pânico. Fecho o livro, abro o jornal na página de esportes e finjo ler. Levanto as escotilhas e tento achar a minha casa. Sem sucesso. O avião sobrevoa ponta negra. Lá de baixo vejo a praia. Tento localizar cada ponto, cada bar, ambulante, quiosque. Sem sucesso. Pareço um estranho, voltando para morrer em sua terra natal. Natal. Até que não é uma cidade ruim para se morrer. No aeroporto tenho mais uma lição de partida. Bandeira na cabeça. Minha mais nova pieguice de bolso. Outra. Depois outra. A voz dela continua a mesma. Difícil acreditar, porém fácil de se prever. Peço um cigarro no lob do aeroporto. Fumo o Marlboro até o filtro quase e atiro o cigarro no chão. Uma senhorinha corcunda vem com uma pá, recolhe o cigarro a despeja a pá em um balde de lixo. Peço outro cigarro. Dessa vez a um cara meio pálido, escocês talvez. Fumo só até a metade e atiro o cigarro do outro lado da grade. Um segurança me olha desconfiado. Viro de costas e leio ‘proibido jogar lixo atrás da cerca/Mata densa, risco de incêndio’.