domingo, 25 de novembro de 2018

Goiânia Nordestina

Há uma ilha de afeto no peito do nordestino que parte. O corpo do nordestino é um arquipélago azul. Ilhas que flutuam num oceano de luzes e sangue. Sua memória, uma península de saudade. A maresia encrustada nos dentes. O suor salgado que escorre em ondas. Mas há uma ilha de afeto no coração do nordestino. A solidão é um náufrago e a ilha é seu reino. Reino de desolação. Reino de antigas serestas que o tempo silenciou. Reino de morenas submersas e ruivas flutuantes. Reino de um só homem e um só rei. O rei solidão não tem herdeiros. O rei solidão mata a sede com água da chuva. Carrega o frio da noite tatuado na pele descascada de sol. Quando bate a fome, uma criança cheia de caprichos, a solidão a engana com estórias de um continente distante. A fome simplesmente adormece e sonha acarajés, buchadas, tapiocas e lagostas aladas.  

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O nordestino é um personagem esmagado na paisagem colorida de um pintor. Paralisado na moldura do tempo. Portinari ou Deus, tanto faz. O nordestino é um cubo mutilado de Picasso. O nordestino é uma tormenta de Turner; uma mulata de DiCavalcanti e um monstro aberração de Tarsila.

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O poeta nos alertou e nós, os nordestinos, esquecemos: “O Nordeste é uma ficção, o nordeste nunca houve.”

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O nordestino que parte não é o mesmo que chega. A viagem, por mais fuleira, exerce sobre o nordestino um fascínio quase infantil. A euforia dos ingênuos. A estrada é a Disney do retirante. Frentistas como Mickeys adormecidos. Um vira-lata de três pernas lembra o Pluto. O banco duro do ônibus, uma grande montanha russa – escalando cordilheiras e no trotando no espinhaço negro do asfalto.  Não há comida de mãe que chegue aos pés do PF, frio e sem sabor, do Bar do Marcão. A paisagem sorri para o nordestino. A paisagem é um canastrão e a estrada é um filme.
Onde termina a BR-101, começa a eternidade.  Onde acaba a eternidade, começa o Sul do país.

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Às vezes o nordeste e eu nos encontramos. É estranho encontrá-lo assim de repente. Ele aparece no refrão de uma canção da Billy Holiday que toca na casa de alguém. Aparece na música de uma palavra e no rótulo das cervejas. Às vezes o nordeste é um garçom chamado Fábio. Mãos ágeis para fatiar a picanha da churrascaria gaúcha. Fábio diz desse jeitinho “Meu sonho sempre foi trabalhar com picanha, moço. Desde menino eu admiro picanha e hoje realizei o sonho. É bom viver o sonho, né, moço?” Fabio nasceu em Imperatriz-MA, e lá mesmo nunca topou um Imperador, um Príncipe Regente, um Sarney que fosse, nada; Imperatriz-MA, acho, é uma cidade só de súditos.   
Não creio que meu conterrâneo Fabio seja pobre de ambição. Acontece que há certa nobreza e abundância de vida na simplicidade que Imperadores, Coronéis e Sarneys embalsamados jamais entenderão.

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A simplicidade é a própria lucidez. Não se chega à liberdade, sem antes passar pela simplicidade. Há uma cerimônia de futilidade e demência. A futilidade é um entorpecente perigoso. Demência é refresco. Mas há drogados por toda parte. Eles querem coisas. Eles estão sempre atrás de algo. Carros, iates, mulheres, nelores, iphones, empregos, banheiras, igrejas, doce de leite, jornais, políticos, esperança, dentistas, promoções, múmias carbonizadas, um cigarro picado à meia noite na última distribuidora do Setor Aeroporto e heróis sem carisma. Eles estão loucos o suficiente para não sacar absolutamente nada.

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Neuza é baiana. Ela não se considera baiana. Mudou com a mãe há trinta anos. O objetivo era Brasília, mas o destino quis Goiânia. O mundo era outro, apesar de ser o mesmo. Neuza tem quarenta e cinco anos. Trabalha na limpeza de um shopping. Neuza é aquela mulher que recolhe as bandejas e varre os corredores. O sotaque baiano se perdeu ou foi esquecido. Neuza usa o uniforme da equipe de limpeza. Um uniforme feito para torná-la invisível.  
–João Nogueira tem uma musica chamada Neuza. É uma canção muito bonita, Neuza.
– Não sou muito de música.
A noite se fez e Neuza ainda não viu a cor noite. O teto cheio de coisas modernas do shopping impede que Neuza saiba que é noite.
– A gente passa tanto tempo aqui dentro, que quando vê, o tempo passou e já é noite.
A noite é tão natural quanto o sotaque perdido de Neuza. Diferente das liquidações, a noite é de verdade. É noite em Goiânia. É noite na Bahia irrecuperável de Neuza. A noite é a mesma no Brasil, embora o Brasil não seja o mesmo.
Beijo-lhe a mão. Neuza não está acostumada a ter a mão beijada. Ela não sabe, mas beijar mão de baiana “chama a sorte”.
– Você é de onde?
– Natal.
– Então a partir de hoje beijar mão de natalino também é sorte. Posso?
– Por favor, Neuza.
Ela me beija a mão. Nos despedimos, cada qual com sua fortuna e lá no fundo, ela sabe, e eu sei, que a noite se fez. A sorte nos pegou de jeito.  

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Agora que a chuva voltou, prometo mudar completamente. Mudar de vida, de penteado, de marca de cigarro e até de religião. Prometo esquecer o mal que me fizeram no tempo que não chovia em Goiânia. Prometo esquecer o sol incansável em sua rotina de agressão. Prometo amar mais a chuva que a preguiça. Mais os mendigos que os santos. Pra quando a chuva for embora, prometo cuidar de ti, Goiânia, como só um filho cuidaria da mãe louca que agoniza marchando pra morte.

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Porém, a chuva caiu e não foi em vão. Agora que a esperança se fez líquida, desde já e até segunda ordem, volto a acreditar em Baudeleire, Rimbaud e no cavaquinho de Waldir Azevedo em Pedacinhos do Céu. Uma vez mais, serei o ingênuo. Ingenuamente, serei atropelado. Perdoarei as piores baixarias e pronunciarei baixinho o nome de Deus em vão. Ensopado dos pés a cabeça, cantarei uma velha canção chuvosa. Goiânia & eu seremos aqueles dois de sorriso fácil atravessando sem pressa o corredor polonês das ruas alagadas. 

É bom que tenha voltado a chover. Foram dias difíceis. Também se a chuva não voltasse, não secariam apenas os açudes e não só o João Leite morreria de inanição aquática, mas o câncer da chuva apodreceria o coração dos homens como um peixe encalhado na lama dura e esquartejada  de um riachinho assassinado. 

A ausência da chuva quase levou à loucura a garota que o namorado abandonou. Por muito pouco o calor não trucidou multidões de adolescentes que desaprenderam a chorar. A ausência da chuva pôs termo a mil cento e cinquenta e oito casamentos. Vocês esqueceram, mas quando não chovia o mundo era outro e as pessoas andavam meio esquisitas.

Nos homens a melancolia e nas mulheres a tristeza. Nos homens o tédio e nas mulheres o peso do sexo. Nos homens as mãos inchadas e nas mulheres os lábios rachados. Tudo porque não chovia. Mas gora que a chuva voltou, os casais que se separaram, súbito, descobriram o peso da distância.  A garota que quase enlouqueceu recobrou a razão. Mesmo os adolescentes, que da vida sabem quase nada, reaprenderam a chorar e não me perguntem como.


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Um Buda gordo. Um orixá valente. Um messias sacrificado. Em nome deles e de todos os profetas mundanos, prometi que mudaria. Depois da chuva, a mudança. Promessa de chuva é dívida. E ela apareceu. Sem aviso prévio nem nada, saltou das nuvens, tocou a campainha e entrou.  Contudo, atenção: recebam a chuva com elegância. Preparem um banquete. Ofereçam um banho quente, sabonete, toalha branca, cama asseada, essas coisas. Afinal, a chuva em Goiânia é o filho que retornou ao velho lar dos pais em busca do impreterível perdão. Afinal, que pai ou mãe negaria o perdão ao filho? Afinal, que filho pode passar sem o perdão dos pais?

A chuva voltou e dizem os meteorologistas, cartomantes do destino da chuva, que ela está só de passagem. Ninguém sabe aonde ela vai. Ninguém sabe quando ela volta. Porém, ela está entre nós. E não é todo dia.