A primeira morte a gente nunca esquece
Hoje
De repente eu descubro que tudo se
trata do velho. Vinte anos ontem da luta Tyson vs. Holyfield. Meu pai era
aficionado por boxe, quando ainda nesse mundo havia meu pai e o boxe. Quer
dizer, meu pai e o boxe ainda existem, mas os últimos vinte anos aproximaram
meu pai e o boxe da morte. Uma aproximação irremissível, porém justa. Meu pai e
o boxe se recusaram a fazer parte do séc. XXI. Eles tem – ou devem ter, eu imagino
– seus motivos para se refugiaram no passado que os criou e por fatalidade da
vida recusou-se a acompanhá-los.
Antes
O velho passou uma semana
falando da luta. No almoço, socava a mesa e dizia:
– O Holyfield não tem chance. Até
Jesus foi derrotado uma vez. Duas, impossível. O Holyfield não tem chance.
O Tyson vinha de uma derrota
para o canalha Evander Holyfield. O Tyson era dono de um cartel invejável. O
Tyson era o messias que o Deus Muhammad Ali havia prometido ao mundo. Isso o
Tyson ainda não sabia, mas a exemplo do verdadeiro messias, ele seria
brutalmente assassinado e renegado por aqueles que mais amou. O Pilatos da vez
chamava-se Mitch Halpern e usava gravatinha borboleta, à moda dos velhos juízes
da WBA. Novamente o Tyson não sabia, mas o dinheiro e o talento são duas
mulheres belíssimas que dão para o primeiro cara que encontram.
Até aquela noite, Mike Tyson
venceria Aquiles, Spartacus, Joe Lewis, Tarzan, qualquer um. Mike Tyson
esmagaria Davi, o rei cruel dos judeus, e nocautearia Golias, o gingantão filisteu
que não sabia dançar à la Sonny Liston. Mike Tyson era o que dizia o que tinha
a dizer da maneira mais rápida e direta – o Ernest Hemingway dos ringues. Mike
Tyson tinha um caso com a eternidade e definitivamente ele não seria preso ou
morto por isso. A eternidade o acolheria, assim como o acolheu sempre que
calçou as luvas e se deixou consumir pela fúria.
Durante
Quando da luta, o velho acordou meu
irmão mais velho, que por sua vez me acordou. O velho fez café e fumou quantos
cigarros sua ansiedade exigiu. O velho nos pediu encarecidamente que fizéssemos
– meu irmão, eu e Platão, o cachorro da casa – silêncio.
– Esse é o tipo de coisa que a
gente assiste em silêncio, vocês entenderam? Vocês estão vendo esses animais
que pagaram uma fortuna para assistir a luta nas primeiras cadeiras? Vê como
eles gritam e urram? Vê como é ridículo? Só um insensível, um verdadeiro
ignorante, é capaz de gritar enquanto uma luta desse tamanho acontece. Onde eles
pensam que estão? No Coliseu? Esses animais pensam que o Bill Clinton é o Júlio
Cesar, percebe? Eles precisam de uma aula de como fazer silêncio. Se eu
soubesse inglês, eu até poderia ensiná-los a ficar em silêncio.
A Luta
A
luta começou e o Tyson mais parecia uma múmia. Apático, lento, desgovernado,
inábil etc. etc.
O primeiro round se foi e o Tyson continuou parado, incapaz sequer de ultrapassar a linha de cintura. Meu pai e meu irmão estavam embasbacados – silenciosamente embasbacados. Era um milagre às avessas. Um milagre do demônio contra as forças do bem, contra o Tyson. O segundo round veio e Evander Holyfield acertou um direto na barriga do Tyson. Tyson avançou e caiu nos braços do Holyfield. O canalha, então, passou a deferir cabeçadas na testa do Tyson. Mitch Halpern, nosso Pôncio Pilatos, lavou as mãos.
Quando o grande Mike Tyson abocanhou a orelha do canalha Evander Holyfield, meu pai rompeu seu voto de silêncio e praguejou como um daqueles "animais que pensam que o Bill Clinton é o Júlio Cesar". Meu pai havia apostado uma grana na vitória do Tyson.
Depois
Meu pai se refugiou no quintal. Não
havia sentido que um lutador do quilate do Tyson fosse capaz de tal. O velho
estava inconformado. Inutilmente, meu irmão tentou consolá-lo:
– Calma, pai, o Tyson vai derrotar
o Holyfield um dia.
– Não fale besteira, garoto. Você
ainda não conhece a vida. Um dia você vai aprender que um lutador como o Tyson
é incapaz de lidar com a derrota. Isso que você acabou de assistir foi a morte
de um homem. Vá se acostumado. Eles morrem todos os dias e dê graças aos céus
que eles morrem.
Meu irmão e eu entramos. Fazia um
frio insuportável e nós precisávamos dormir. Mesmo quando um homem morre, mesmo
quando alguém tem a orelha arrancada, as crianças precisam dormir. E nós
dormimos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário