Ela sorriu como um animal suado dentro da noite. Regou com vinho o cansaço do corpo. Trouxe-me o cigarro consumido pela metade. Apoiou-se no parapeito da janela e como uma estrela esquecida do rádio murmurou uma canção doce e imperceptível. Ligou a TV. Desligou a TV. O mundo, outra vez, dispensável e colorido. Disse "agora eu preciso de música e creio que você também", e a música se fez. De joelhos, pronunciou sua oração libidinosa e repetitiva. Depois de tudo, seu corpo amolecido de animal resgatou a pureza dos anjos que só veem os loucos e os poetas. Sonolenta, dançou. Quando saiu o sol da masmorra noturna de poeira e calor, pediu-me as horas. Rapidamente, abandonou o universo finito do quarto e voltou com suco, pão e o jornal mal escrito que ninguém mais lê, exceto o homem velho e insignificante que há em mim. "Preciso dormir", ela disse. "Durma", eu respondi, e como se seu espirito se desprendesse do corpo para percorrer solitário um caminho de alucinógena felicidade, ela dormiu.
Agora sou eu o animal e disputo com a insônia a possibilidade do sono, do sonho e da felicidade que não existe, nunca existiu, e que nós grotescamente despertamos em sonho. É uma luta vil, e a insônia me vence. Permaneço acordado... e escrevo.
terça-feira, 20 de setembro de 2016
domingo, 21 de agosto de 2016
Durante muito tempo
tive uma única inspiração e toda minha vida foi um ensaio mesquinho e
desesperado, uma fome, uma sede, sei lá, toda minha vida foi a tentativa
fracassada de abandoná-la, ela, ela, a inspiração, ela, Natal – a cidade dos
saqueadores, dos padres, dos cafajestes sem fé, dos maconheiros, das
castas blindadas, do oceano infinito e dos aviões que voam com o combustível
nas últimas e dos cavalos de aço que desfilam pela Av. Prudente de Morais. Vai,
sim, me deixa ser franco: por que me atormentas, Natal? Por que me persegues
como o espírito torpe da vítima persegue o assassino? Por acaso outros também
não te mataram, outros também não fodem contigo e somem no dia seguinte? Gastei quatro relógios fugindo de tuas
esquinas, Nova Amsterdã. Quatro relógios me esquivando da paisagem. Becos e vielas de um passado faminto. Por um segundo, juguei que te havia superado. Ledo engano. Hoje,
exilado, esqueci-me que te havia esquecido, e tomei carona na recordação de tua vasta cabeleira esparramada sobre as dunas de indiferença e calor. Sabe, Natal, penso que ainda há
muita vida em ti. Vida em teus quadris esburacados. Vida em teus calvos morros
de areia. Vida nos de meu sangue que há quatrocentos anos agonizam presos à
correnteza do hálito marítimo. A promessa é de mais quatrocentos anos de
amor, angustia e esquecimento. Oh, cidade fantasma, lancei ao mar meus sonhos de porcelana. O estômago do mar é um baú de sonhos e afogados. Cedo ou tarde, mandarei ao prelo o
livro que te devo. O livro que prometi aos exus de tua última encruzilhada. O livro que me roubou quatro anos e uma dezena de amigos e um
coleção de vícios. O livro que preciso para seguir em frente – seguir em
frente, infelizmente, significa outro livro. O que são cem mil palavras na vida
de um infeliz, me diz, doce senhora? Falta pouco. Mais um mês, y cambio de
religión. Depois, Natal, te farei novamente realidade. Depois, depois...
sexta-feira, 29 de julho de 2016
Sorte de quem escreve o mesmo texto a vida inteira. O tempo é
um funcionário público cuja repartição é o Caos. O tempo, diferente das amantes
que somem no meio da noite, nunca sacou o batom rosa-choque e escreveu uma balada
de despedida no espelho do banheiro. O tempo não sabe de cor nenhuma canção do
Bob Dylan. O tempo nunca leu Os Irmãos Karamázov sentado no último banco do
último ônibus Natal-João Pessoa. O tempo nos levou à cruz, mas também foi a mão
invisível e pesada que nos trouxe ao mundo. Meia dúzia de milhões o chamam de
Deus. Outros, em vão, tentam relativizá-lo. Semana passada, ganhei um aquário.
Comprei três peixes e um mergulhador de plástico. Ah, se eu pudesse alimentar
os peixes do aquário da sala com o tempo desperdiçado. Oh, se o mergulhador de
plástico preso ao universo não definido do minúsculo aquário fosse capaz de uma
poesia. Urge o envio de duas garrafas de cachaça via sedex para um velho amigo,
uma de minhas setenta e sete promessas pendentes. Urge terminar o livro que há dois
anos e cem mil palavras depois me persegue pelas esquinas. O livro que está nos
lábios rachados das mulheres goianas. O livro que me acompanha à tarde, à
noite, e à madrugada violenta ele bebe e fuma e canta como se o mundo fosse
apenas ele e seu gosto musical. O Nordeste, vocês não sabem?, é um estado de
espírito hipnotizante e brutal. Cada parágrafo de meu livro é um amigo esquecido.
Cada capítulo é um amor sepultado numa geleira de sol e calor, fome e delírio. Pirangi,
Cotovelo & Ponta Negra: essas são as putas que tentaram me afogar e fracassaram.
Se há um bonde chamado desejo, há uma praia chamada desolação. O egoísmo, certamente,
é o único vício do qual ainda não me recuperei.
domingo, 5 de junho de 2016
Piazzolla, cretino, quem te disse que é sagrado o tempo? Piazzolla, mira: envelheci como vinho esmaecido no porão de um navio sepultado, entre fantasmas nordestinos e tubarões obesos. Piazzolla, meu querido amigo, se Buenos Aires ainda existisse, palavra de honra como tomaria o primeiro avião Congonhas-Ezeiza. Chegando lá, uma linda dançarina argentina, um coma alcoólico e quem sabe um último pedido. Mas Buenos Aires é passado. E o passado, em se tratando de América do Sul, é mais um livro de traças na prateleira empoeirada. Portanto, está fora de questão. Piazzolla, quem sou eu para te ensinar qualquer coisa , o mais velho dos cachorros velhos, mas aqui vai: no tango e na vida, felicidade é supérfluo.Felicidade, por aqui, só para disfarçar a tristeza e olhe lá. Assim no tango como no céu, a tristeza nossa de cada dia nos dai hoje. Abração, Astor – até que a sorte nos separe.
domingo, 1 de maio de 2016
Preciso, e o quanto antes, da emoção de criança
quando encontrei “Lumar”, o Tubarão-cadáver ainda intacto e prestes a ser
devorado pelo tempo – Cotovelo, 1998. Lumar foi como resolvi chamá-lo. Fui uma
criança prodigiosa em batismos. Todavia, não vem ao caso. Preciso, se não for
pedir muito, da razão que perdi – a troco de quê, ainda não descobri – quando
lancei meu primeiro-único-e-fracassado livro no distante ano de 2010. 2010 reside
numa viela do passado triste, escura e inabitável. Nelson Rodrigues e a velha
frase: “Nada mais distante que o passado-recente.” Em 1998 eu me infiltrava
entre os poucos livros de meu pai, sorrateiramente guardados na estante da
sala, como um móvel inútil a enfeitar o tédio gelatinoso da casa, e bem... eu
já sabia ler e lia/li em letras garrafais “Nelson Rodrigues, Literatura
Comentada”, e aquele livrinho foi o brinquedo mais
precioso de minha infância. Eu era como um pequeno bezerro hipnotizado pela
imagem do Nelson – gordo, macilento e de suspensórios, com um cigarro na mão,
fazendo cara de sério para eternidade. Aquele homem desconhecido e aquele nome “Nelson
Rodr...” tinha algo a me dizer, mas eu ainda não sabia o quê. Não muito tempo
depois, resolvi investigar o que havia para além da imagem do autor. Abri o
livro. Li o livro – no banco de trás do Chevette verde de meu pai, escondido
dos habitantes da casa. E o resultado: Álbum de Família, Anjo Negro e Senhora
dos Afogados – minha introdução à literatura foi através do Nelsão e,
ironicamente, do teatro. Sem sombra de dúvida, aquilo mudou minha vida – não sei
se pra melhor, mas mudou. Em 2010, quando do lançamento do meu Oxum da rua de
trás, outra de suas frases me fisgou de jeito e me acompanha desde então: “O
artista quer ser gênio para alguns, e imbecil para outros. Se puder ser imbecil
para todos, melhor”.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
O primeiro impulso de um jovem
escritor é o sofrimento. Sofrem quanto mais duvidam e se entregam a um mundo
libertino endossado pela solidão. Sentem que estão à parte do mundo. Revoltados
e solitários, buscam conforto na filosofia, na poesia, nos grandes romances, no
quer que imite a vida a ponto de transformá-la. Aí, dá-se o confronto
definitivo do jovem escritor com o mundo incompleto que é seu primeiro inimigo
mortal. Em tudo, a solidão faz-se presente. Ela, a solidão, é o sol da
madrugada.
O segundo impulso do jovem
escritor é transportar-se para uma terra escura e risória, uma ilha de ilusão
apartada do mundo tépido que o gerou. Funda a gênese da razão em terreno
íngreme – num sopro, tudo pode desabar. Por outro lado, os grandes devaneios –
estes que nos salvam do tédio ordinário da vida – tem por base os melhores
alicerces, escorados que são pela essência divina que há no homem, em qualquer
homem, de criar e gozar da criação. Assim o faz o jovem escritor. A fim de
conceber uma realidade estritamente pessoal capaz de salvá-lo da ignorância e
da solidão, ilude-se na tentativa de estancar a dor. O homem que se abstém de
criar é uma criatura mutilada. O jovem escritor, egoísta como um anjo preterido
por Deus, percebe, antes de tudo, que sofrimento e criação pertencem ao mesmo
processo excruciante. Para depois da criação e do gozo, a morte. Antes da
morte, tudo.
Naturalmente, as pessoas
carregam a ânsia de contar suas histórias, não interessa o quão
desinteressantes elas sejam. E quando elas começavam, é impossível fazê-las
parar: nos cafés, nos bares, nas ruas, nos leitos de hospital, nos manicômios.
Alguns entre milhares de psicopatas, motoristas, ex-presidentes, advogados
falidos, por mais patéticos, descobrem-se escritores. Me parecem garotinhas
recém-menstruadas: não se cansam de admirar o próprio sangue frouxo e acreditam
que a partir daí tornaram-se mulheres completas. Uma vez dentro do baile,
promovem-se com a maciez dos publicitários de sabão em pó. Vendem suas ideias
como artigos de primeira necessidade, solventes da impureza humana. Ora, um
escritor não pode vender desinfetante, considerando que é um negociante prático
da sujeira do mundo. Um homem que não alimentou os porcos com a própria carne
não pode dizer que conhece o chiqueiro.
Roubei uma quantidade admirável
de livros da biblioteca – mais tarde percebi o quão nefasto é assaltar uma
biblioteca, mas já era tarde. Roubava pra abater a mensalidade cara que meus
pais desembolsavam. Já que eu não fazia uso do sábio conhecimento descartável
dos professores, nada mais justo que compensar aumentando minha biblioteca
particular. Li pouquíssimo Jack London antes de roubar todos os dez exemplares
da obra do London disponíveis na biblioteca – não sei muito bem porque escolhi,
entre tantos livros, a obra do London sem nunca tê-lo lido. Atração magnética,
talvez. Uma vez concretizado o furto, li e reli apaixonadamente a obra do
grande mestre Jack London, esse que atravessou a América de carona nos velhos
trens e passou fome e mendigou e foi ao Alasca e lutou sozinho contra oito
piratas africanos e morreu empanturrado de uísque de péssima qualidade. Tive a
impressão, um tanto doentia, de que passara a conhecer aquele homem mais do que
a mim. Ou, pelo menos, os personagens de seus livros. Tratava-se da mesma
hipnose insustentável de imaginar-me encarnado em outra pele, outra vida – no
entanto, entre essa vida e a outra, apenas o limbo do desejo, das recordações
forjadas, urdidas em devaneios emborrachados. Tudo falso como uma nota de
trinta. Afinal, literatura não é isso? Não é a mentira dita de maneira sublime
a ponto de tornar-se verdadeira? Porquanto, satisfazia-me com a falsificação.
Inventar-se ou descobrir-se, dava na mesma, contanto que algo de novo pintasse
no front. É assim, intercalando falsificações, que se dá a invenção de cada homem.
Comigo não foi diferente.
Os homens da prateleira
adquiriram a importância do próprio Deus. De um Deus acessível que não sonhasse
dia e noite com bajulação. De um Deus bondoso cuja única vítima de sua invenção
fosse ele mesmo. Prisioneiro e carcereiro do mesmo sonho.
Só
encontrava verdadeiro prazer na leitura e na escrita – e na maconha, a divina
companheira. O resto era o intervalo entre as duas coisas. Não obstante, a
necessidade me levou ao trabalho, à disciplina. A necessidade me levou a
enxergar, insipidamente, cada banalidade e desgraça contida na vida como uma
dádiva comestível. A necessidade é o motor que move os homens para o
desconhecido. E lá estava eu, escrevendo duas mil palavras por dia por pura e
resoluta necessidade. Pela primeira vez, a dor e o lixo da vida me pareciam um
presente. Estava, também, disposto a romper com a dor e o lixo. Este rompimento
equivalia a reter em mim mais dor e mais lixo. Evoluir não é abandonar os
problemas, mas aperfeiçoá-los – com o máximo de estoicismo que nossos ombros
frágeis possam suportar. Não acreditava, e até hoje não acredito, que a coragem
tenha se manifestado em minha carne senão através da caneta e do papel.
Ela,
a literatura, era, de uma vez, o mundo, a vida, a beleza e o infortúnio. Era a
ilusão de ter a verdade em mãos, como um sabonete molhado e escorregadio,
cantando no chuveiro.
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