sábado, 12 de agosto de 2017

A MULHER MAIS BONITA DA CIDADE

A MULHER MAIS BONITA DA CIDADE

1

A mulher mais bonita da cidade. Ela caminhava. Parava. Sentava. Levantava. Voltava a caminhar. Paisagem: a porção seca de areia e o mar quando amanhece e os corais pontiagudos e os caranguejos abilolados – tudo era ela, e eu me apaixonei.
Eu tinha cinco anos. Meu pai subornava meu irmão mais velho com uma nota gorda de dez (isso em 1997) e dia sim, dia não, meu irmão me levava à praia. Ele, meu irmão, também não desgrudava dela, a mulher mais bonita da cidade. Eu era todo ciúmes. Ciúmes do meu irmão que a desejava sem amor, dos picolezeiros, dos gringos e dos peixes que saltavam para vê-la; ciúmes do sol que a assediava sem pudor e ciúmes do vento soprando em seu corpo moreno o áspero sal das falésias.  
Todos a desejavam, mas ela não dava a menor bola. Ela era a indiferença bronzeada.
Vejam: – A beleza é naturalmente indiferente. Assim como o mar não se envaidece ante a prece agônica dos afogados, ela ignorava a própria beleza e a cobiça dos homens.
Ninguém sabia uma vírgula de sua vida, nada, absolutamente nada, a não ser que era a mulher mais bonita da cidade.
Isso bastava.

2

Um toró miserável caía sobre a Praia do Cotovelo.
A praia deserta. Um pescador , sua viagem perdida, meu irmão e eu. E ela, claro, porque ela habitava todas as praias da cidade. Sem ela, a cidade era uma noite fracassada de réveillon. A cerveja acabou, as crianças dormiram e os fogos só fazem barulho e nenhuma luz.
Chovia e ela caminhava. Meu irmão buscou abrigo num quiosque abandonado. Os que não amam fogem da chuva e a chuva não perdoa os que não amam. Esses não herdarão o reino chuvoso dos céus, mas um quiosque abandonado nos confins do inferno. Por sua vez, ela permaneceu lá. Caminhando. O olhar distante divisando a costa remota da África, do outro lado do oceano e do tempo.
O que tanto ela olhava?
De repente, sentou na areia molhada que lhe sugou quadris-coxas-joanetes rumo ao núcleo desconhecido da Terra.
Se vocês não conhecem Natal ou nunca foram à Praia do Cotovelo, atenção: quando chove, toda areia é movediça e toda tristeza é pouca.

3

Em meio à chuva, eu a observava. Maravilhado. Quase às lágrimas. Não chorei porque as crianças só choram de dor ou despeito, e não era dor, tampouco despeito, o que sentia.
Se Galileu Galilei encontrasse a mulher mais bonita da cidade caminhando pela praia achatada, diria: “A Terra é plana”.
Em seguida, acenderia uma fogueira e guardaria em chamas o segredo de sua ciência.

4

Nunca choveu tanto. Meu irmão veio me buscar. Cortesmente, o mandei pentear macaco. Ele não gostou muito da ideia e avançou com aquele olhar animalesco que os adultos lançam quando desafiados por um moleque petulante. (No meu caso, substituam petulância por paixão pela mulher mais bonita da cidade, e dá na mesma).  
– Vá pentear macaco, seu ditador da vida dos outros – repeti uma vez mais e corri, corri, corri como jamais correu o jamaicano Bolt para o recorde mundial. Corri como só uma criança consegue correr. Quando querem, as crianças são mais rápidas que qualquer antílope africano fugindo da morte.
Enfim: corri como nunca e escorreguei como sempre. Foi quando percebi que quanto mais corria, mais me afastava dela.
Apavorado, voltei. Ela não estava mais lá. Ela nunca mais esteve lá. E aquela foi a última vez.

5

A única beleza que não termina em tragédia é aquela que tem consciência de si.
Um vulcão só explode porque ainda não se descobriu vulcão. Se soubesse, confessaria os traumas de sua infância paleolítica no divã rochoso da psicanálise vulcânica.
Os pardais e as gaivotas não se atiram em queda livre. Na existência aeroespacial dos pássaros, não existe suicídio.

6

Estávamos no trapiche da Praia de Pirangi, meu irmão e eu, disputando uma partida de arremesso de pedras ao mar. Era impossível vencê-lo em condições normais, a não ser quando minha pedra era muito grande e a dele muito pequena. Não bastasse a desvantagem física, meu irmão sempre me deixava com as piores pedras.  
Um amigo do meu irmão o avistou e correu até o trapiche. Estava animado, eufórico com a notícia que trazia. O infeliz mal nos alcançou e foi logo abrindo o berreiro:
– Sabe aquela morena? Encontraram ontem. O mar cuspiu. Só reconheceram pela tatuagem. Até agora não apareceu família, nada, porra nenhuma. Esquisito, né? Tão dizendo que se matou. Se jogou no mar, a louca. Bonita daquele jeito, mas sem um pingo na cabeça.  Eu bem que desconfiava, eu bem que desconfiava... Calada daquele jeito, coisa boa não era.

7

Meus amigos se lançam ao mar. São sete e brincam com uma bola de vôlei. O mar está calmo e o sol é o termômetro das ondas. Se a vida não fosse uma besteira, eu brincaria de bola. Se a vida não fosse essa, juro por Deus, eu jogaria bola com meus amigos.
Permaneço sentado exatamente onde ela esteve... pela última vez. É questão de tempo: um dia o mar terá consciência de si. Consciente, se arrependerá. Arrependido, recuará. Recuará até que a cidade do Natal adquira dimensões continentais.
Então, construiremos uma ponte ligando a Praia do Cotovelo à costa da África.
Será a maior ponte da história da humanidade. Algum imbecil batizará com nome de político a maior ponte da história da humanidade, mas popularmente será conhecida como: ESTRADA DOS AFOGADOS.

8

Ninguém jamais desconfiará que ela foi/é a gênese dos mares. O estopim do mundo do futuro. A última musa do Atlântico Nordeste. Aquela que foi engolida pelo mar. Sem família, sem sossego, sem identidade. Apenas ela e a sinfonia imantada das ondas. A mulher mais bonita da cidade.

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