quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Palavrear


Fui à Palavrear. Precisava encontrar um velho amigo. Um velho amigo é uma caixa de coisas enferrujadas. O passado, as estórias, os conhecidos em comum que o tempo arrastou para o deserto do esquecimento. 

Na vida, montamos algumas trincheiras. Ou isso ou definhamos no campo aberto das desilusões. A Palavrear é uma trincheira. A minha trincheira. Uma trincheira povoada de generais: Borges, Jorge Amado, Hemingway, Bandeira, Whitman, Lorca, Marquez, Drummond, O velho Braga... 

Alguns lugares nos protegem como se estivéssemos no útero materno.  Pequenas cavernas onde nos abrigamos da chuva. Protegidos, descansamos da ruína - pessoal e coletiva. Esquecemos o infortúnio individual e o infortúnio de todas as gentes. Porém, uma livraria não é apenas uma trincheira. Uma livraria é uma igreja. Para cada poeta, um cigarro aceso. Em cada verso uma oração. O paraíso de Milton. Os labirintos de Borges. Os castelos de Celine. Deuses e filósofos no mesmo banquete de ossos. 

Certa vez, após brigar com minha esposa, saí de casa - ou fui expulso? Já não lembro mais. O fato é que fiz as malas e fui embora. Mas não havia para onde ir.  Eu vivia na Rua 18, entre o Lyceu e o nada.  No calor da indecisão, peguei as malas e me mandei pra Palavrear. Do meu apartamento à Palavrear, cinco minutos de caminhada. Lá, entre os livros, eu descobriria pra onde ir. Lá, à sombra dos generais, eu encontraria a resposta. Após cinco horas flanando pela livraria, lendo para esquecer, esquecendo para viver, tudo acabou bem. Voltei pra casa. Minha amada estava a minha espera. Mas a Palavrear foi meu porto seguro. Agora imagine a cena: um imbecil com uma camisa florida, após brigar com a esposa, arrastando duas malas pelas orelhas, adentrando a livraria como um retirante da própria solidão. 

A Palavrear é uma ilha de esperança e pureza. Entre o Leste Universitário dos feridos e o Setor Central dos fantasmas. 

domingo, 25 de novembro de 2018

Goiânia Nordestina

Há uma ilha de afeto no peito do nordestino que parte. O corpo do nordestino é um arquipélago azul. Ilhas que flutuam num oceano de luzes e sangue. Sua memória, uma península de saudade. A maresia encrustada nos dentes. O suor salgado que escorre em ondas. Mas há uma ilha de afeto no coração do nordestino. A solidão é um náufrago e a ilha é seu reino. Reino de desolação. Reino de antigas serestas que o tempo silenciou. Reino de morenas submersas e ruivas flutuantes. Reino de um só homem e um só rei. O rei solidão não tem herdeiros. O rei solidão mata a sede com água da chuva. Carrega o frio da noite tatuado na pele descascada de sol. Quando bate a fome, uma criança cheia de caprichos, a solidão a engana com estórias de um continente distante. A fome simplesmente adormece e sonha acarajés, buchadas, tapiocas e lagostas aladas.  

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O nordestino é um personagem esmagado na paisagem colorida de um pintor. Paralisado na moldura do tempo. Portinari ou Deus, tanto faz. O nordestino é um cubo mutilado de Picasso. O nordestino é uma tormenta de Turner; uma mulata de DiCavalcanti e um monstro aberração de Tarsila.

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O poeta nos alertou e nós, os nordestinos, esquecemos: “O Nordeste é uma ficção, o nordeste nunca houve.”

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O nordestino que parte não é o mesmo que chega. A viagem, por mais fuleira, exerce sobre o nordestino um fascínio quase infantil. A euforia dos ingênuos. A estrada é a Disney do retirante. Frentistas como Mickeys adormecidos. Um vira-lata de três pernas lembra o Pluto. O banco duro do ônibus, uma grande montanha russa – escalando cordilheiras e no trotando no espinhaço negro do asfalto.  Não há comida de mãe que chegue aos pés do PF, frio e sem sabor, do Bar do Marcão. A paisagem sorri para o nordestino. A paisagem é um canastrão e a estrada é um filme.
Onde termina a BR-101, começa a eternidade.  Onde acaba a eternidade, começa o Sul do país.

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Às vezes o nordeste e eu nos encontramos. É estranho encontrá-lo assim de repente. Ele aparece no refrão de uma canção da Billy Holiday que toca na casa de alguém. Aparece na música de uma palavra e no rótulo das cervejas. Às vezes o nordeste é um garçom chamado Fábio. Mãos ágeis para fatiar a picanha da churrascaria gaúcha. Fábio diz desse jeitinho “Meu sonho sempre foi trabalhar com picanha, moço. Desde menino eu admiro picanha e hoje realizei o sonho. É bom viver o sonho, né, moço?” Fabio nasceu em Imperatriz-MA, e lá mesmo nunca topou um Imperador, um Príncipe Regente, um Sarney que fosse, nada; Imperatriz-MA, acho, é uma cidade só de súditos.   
Não creio que meu conterrâneo Fabio seja pobre de ambição. Acontece que há certa nobreza e abundância de vida na simplicidade que Imperadores, Coronéis e Sarneys embalsamados jamais entenderão.

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A simplicidade é a própria lucidez. Não se chega à liberdade, sem antes passar pela simplicidade. Há uma cerimônia de futilidade e demência. A futilidade é um entorpecente perigoso. Demência é refresco. Mas há drogados por toda parte. Eles querem coisas. Eles estão sempre atrás de algo. Carros, iates, mulheres, nelores, iphones, empregos, banheiras, igrejas, doce de leite, jornais, políticos, esperança, dentistas, promoções, múmias carbonizadas, um cigarro picado à meia noite na última distribuidora do Setor Aeroporto e heróis sem carisma. Eles estão loucos o suficiente para não sacar absolutamente nada.

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Neuza é baiana. Ela não se considera baiana. Mudou com a mãe há trinta anos. O objetivo era Brasília, mas o destino quis Goiânia. O mundo era outro, apesar de ser o mesmo. Neuza tem quarenta e cinco anos. Trabalha na limpeza de um shopping. Neuza é aquela mulher que recolhe as bandejas e varre os corredores. O sotaque baiano se perdeu ou foi esquecido. Neuza usa o uniforme da equipe de limpeza. Um uniforme feito para torná-la invisível.  
–João Nogueira tem uma musica chamada Neuza. É uma canção muito bonita, Neuza.
– Não sou muito de música.
A noite se fez e Neuza ainda não viu a cor noite. O teto cheio de coisas modernas do shopping impede que Neuza saiba que é noite.
– A gente passa tanto tempo aqui dentro, que quando vê, o tempo passou e já é noite.
A noite é tão natural quanto o sotaque perdido de Neuza. Diferente das liquidações, a noite é de verdade. É noite em Goiânia. É noite na Bahia irrecuperável de Neuza. A noite é a mesma no Brasil, embora o Brasil não seja o mesmo.
Beijo-lhe a mão. Neuza não está acostumada a ter a mão beijada. Ela não sabe, mas beijar mão de baiana “chama a sorte”.
– Você é de onde?
– Natal.
– Então a partir de hoje beijar mão de natalino também é sorte. Posso?
– Por favor, Neuza.
Ela me beija a mão. Nos despedimos, cada qual com sua fortuna e lá no fundo, ela sabe, e eu sei, que a noite se fez. A sorte nos pegou de jeito.  

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Agora que a chuva voltou, prometo mudar completamente. Mudar de vida, de penteado, de marca de cigarro e até de religião. Prometo esquecer o mal que me fizeram no tempo que não chovia em Goiânia. Prometo esquecer o sol incansável em sua rotina de agressão. Prometo amar mais a chuva que a preguiça. Mais os mendigos que os santos. Pra quando a chuva for embora, prometo cuidar de ti, Goiânia, como só um filho cuidaria da mãe louca que agoniza marchando pra morte.

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Porém, a chuva caiu e não foi em vão. Agora que a esperança se fez líquida, desde já e até segunda ordem, volto a acreditar em Baudeleire, Rimbaud e no cavaquinho de Waldir Azevedo em Pedacinhos do Céu. Uma vez mais, serei o ingênuo. Ingenuamente, serei atropelado. Perdoarei as piores baixarias e pronunciarei baixinho o nome de Deus em vão. Ensopado dos pés a cabeça, cantarei uma velha canção chuvosa. Goiânia & eu seremos aqueles dois de sorriso fácil atravessando sem pressa o corredor polonês das ruas alagadas. 

É bom que tenha voltado a chover. Foram dias difíceis. Também se a chuva não voltasse, não secariam apenas os açudes e não só o João Leite morreria de inanição aquática, mas o câncer da chuva apodreceria o coração dos homens como um peixe encalhado na lama dura e esquartejada  de um riachinho assassinado. 

A ausência da chuva quase levou à loucura a garota que o namorado abandonou. Por muito pouco o calor não trucidou multidões de adolescentes que desaprenderam a chorar. A ausência da chuva pôs termo a mil cento e cinquenta e oito casamentos. Vocês esqueceram, mas quando não chovia o mundo era outro e as pessoas andavam meio esquisitas.

Nos homens a melancolia e nas mulheres a tristeza. Nos homens o tédio e nas mulheres o peso do sexo. Nos homens as mãos inchadas e nas mulheres os lábios rachados. Tudo porque não chovia. Mas gora que a chuva voltou, os casais que se separaram, súbito, descobriram o peso da distância.  A garota que quase enlouqueceu recobrou a razão. Mesmo os adolescentes, que da vida sabem quase nada, reaprenderam a chorar e não me perguntem como.


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Um Buda gordo. Um orixá valente. Um messias sacrificado. Em nome deles e de todos os profetas mundanos, prometi que mudaria. Depois da chuva, a mudança. Promessa de chuva é dívida. E ela apareceu. Sem aviso prévio nem nada, saltou das nuvens, tocou a campainha e entrou.  Contudo, atenção: recebam a chuva com elegância. Preparem um banquete. Ofereçam um banho quente, sabonete, toalha branca, cama asseada, essas coisas. Afinal, a chuva em Goiânia é o filho que retornou ao velho lar dos pais em busca do impreterível perdão. Afinal, que pai ou mãe negaria o perdão ao filho? Afinal, que filho pode passar sem o perdão dos pais?

A chuva voltou e dizem os meteorologistas, cartomantes do destino da chuva, que ela está só de passagem. Ninguém sabe aonde ela vai. Ninguém sabe quando ela volta. Porém, ela está entre nós. E não é todo dia. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A gente sempre sobrevive . Sobrevivemos nas acrópoles atenienses sem internet, mas envolvidos numa trama peculiar chamada filosofia. Sobrevivemos como escravos babilônios há 2500 anos e mesmo Nabucodonosor, manda chuva na terra da Babilônia, Fidel Castro de antigamente, sobreviveu. Já houve quem foi centurião romano, center-four do XV de Piracicaba ou poeta simbolista e todos eles sobreviveram. Sobreviveram índios e jesuítas. Torturados e torturadores. Lunáticos do Oiapoque e imbecis do Chuí. Sobreviver é imperioso. Sobrevive o impulso sexual na moça virgem. Sobrevive a dor invisível no amputado. A fome no viciado. A loucura nos santos. O cheiro de vida nos peixes envenenados. Tucanos e lulistas, pecuaristas e black blocs, delatores e delatados – todos eles, sem exceção, invictos em vida, profissionais da sobrevivência. Entre a indiferença e a piada pronta, os canalhas passam ao largo da morte. 
Do lado de cá da ilha de solidão tupiniquim, apesar dos safadões e da suruba sertaneja e do cativeiro onde meteram o passado e dos zumbis do centro de Goiânia e do calor infernal, sobreviver é água com açúcar. Porquanto, é possível sobreviver de todas as formas, exceto sem amigos. Os amigos são um alento – sobretudo os que ainda não aterrissaram no Facebook ou já morreram ou desapareceram ad eternum na cortina de fumaça dos bares. Um amigo morto é a prova viva que sobreviver a morte é mais fácil do que parece.
Nessa vidinha, tudo tem jeito, tudo se renova, tudo tem um preço, um fiador e um otário em 10x sem juros; tudo se fode para depois se foder outra vez e finalmente, após uma sequência harmoniosa de fodas kármicas e fodas casuais , os homens e as coisas tropeçam no princípio de tudo e sobrevivem.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Não que a vida perto do mar seja mais fácil. Há engarrafamento na orla de João Pessoa. As mulheres também não amam no Cote D'azur. Perto do mar, os juros do Itaú e a TV e o Rádio e as briguinhas de facebook e os mendigos e a Av. Getúlio Vargas... falam todos o mesmo idioma nacional. Perto do mar também se morre. Perto do mar há os que se lançam indefesos em busca da morte salgada. Parafraseando o outro: a morte é a morte e suas circunstancias, certo? Não é sequer o caso de dizer que a beleza salva. Que a beleza suaviza a manhã e embala a noite. Que a beleza isso ou aquilo – que ela é um santo remédio, pode apostar que sim, mas não é o caso.
Acontece que tenho me esparramado na rede da sala. Como uma criança sem escrúpulos imaginativos, faço de conta que o céu é o mar – de cabeça pra baixo, porém o mar. As raras nuvens de setembro que volitam o planalto central me parecem as ondas espaçadas do calmo oceano goiano que não existe, meu Deus, mas que há de existir, há de existir!
Às vezes meu corpo sonolento faz do barulho do ventilador Arno três rotações o soluço embriagante das águas que se chocam contra o tempo das falésias.
Esporadicamente acendo um cigarro enquanto tomo banho e de olhos bem fechados é a chuva marítima que me invade o peito ensaboado.
Uma vez ou outra ligo para um parente ou amigo natalense e pergunto meio desinteressado:
- Vem cá... Vem cá... Esse barulho aí no fundo... Esse barulho... É do mar?
Sempre, SEMPRE, “esse barulho é do mar, André, é do mar”.

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Escrever uma história, taí minha única ambição. Uma história que comovesse o coração secreto das mulheres. O coração das mulheres é uma trincheira alemã e não se pode descer uma trincheira com tulipas e boas intenções. Uma história mentirosa, irreal, delirante, mas que estivesse próxima o suficiente da vida a ponto de imitá-la. 
Quando a verdade, por puro capricho, atormenta a vida de qualquer artista (por mais bundão o artista), ela é como um quadro de Modigliani: pescoço alongado e olhos vazados, corpo nu e alma arrebatada.
Uma história que fosse minha e não precisasse de mim. Talvez um mito. Quem sabe a lenda de um amor medieval sacaneado pelas circunstâncias de seu tempo. Um amor que nunca aconteceu e jamais acontecerá.
Assim como os homens, as histórias que contamos tem endereço certo: o esquecimento -- única agonia e único consolo.
O esquecimento é a garota que jamais nos abandonará. O esquecimento é a estrada de ferro por onde passam todas as histórias. O esquecimento é uma canção de despedida do Nelson Cavaquinho. Um enterro sem mulatas. Um samba sem adeus.
O esquecimento e a capacidade de contar histórias são as únicas coisas que nos ligam aos deuses.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Devia ser uma noite normal. Uma noite onde o porteiro dorme, o Bonner dá seu “boa noite” e os mendigos engolem o frio das calçadas. Uma noite sem começo, mas com fim. Como se tratava de uma noite normal, também fui a normalidade: Bebi. Fumei. Conversei. Gastei o castelhano e conjurei o francês. Mas o que me atormenta fala o idioma português e está na filosofia dos corpos desconhecidos. 
E em português eu articulo pela última vez na noite essa ausência que fuma dos meus cigarros.