O primeiro impulso de um jovem
escritor é o sofrimento. Sofrem quanto mais duvidam e se entregam a um mundo
libertino endossado pela solidão. Sentem que estão à parte do mundo. Revoltados
e solitários, buscam conforto na filosofia, na poesia, nos grandes romances, no
quer que imite a vida a ponto de transformá-la. Aí, dá-se o confronto
definitivo do jovem escritor com o mundo incompleto que é seu primeiro inimigo
mortal. Em tudo, a solidão faz-se presente. Ela, a solidão, é o sol da
madrugada.
O segundo impulso do jovem
escritor é transportar-se para uma terra escura e risória, uma ilha de ilusão
apartada do mundo tépido que o gerou. Funda a gênese da razão em terreno
íngreme – num sopro, tudo pode desabar. Por outro lado, os grandes devaneios –
estes que nos salvam do tédio ordinário da vida – tem por base os melhores
alicerces, escorados que são pela essência divina que há no homem, em qualquer
homem, de criar e gozar da criação. Assim o faz o jovem escritor. A fim de
conceber uma realidade estritamente pessoal capaz de salvá-lo da ignorância e
da solidão, ilude-se na tentativa de estancar a dor. O homem que se abstém de
criar é uma criatura mutilada. O jovem escritor, egoísta como um anjo preterido
por Deus, percebe, antes de tudo, que sofrimento e criação pertencem ao mesmo
processo excruciante. Para depois da criação e do gozo, a morte. Antes da
morte, tudo.
Naturalmente, as pessoas
carregam a ânsia de contar suas histórias, não interessa o quão
desinteressantes elas sejam. E quando elas começavam, é impossível fazê-las
parar: nos cafés, nos bares, nas ruas, nos leitos de hospital, nos manicômios.
Alguns entre milhares de psicopatas, motoristas, ex-presidentes, advogados
falidos, por mais patéticos, descobrem-se escritores. Me parecem garotinhas
recém-menstruadas: não se cansam de admirar o próprio sangue frouxo e acreditam
que a partir daí tornaram-se mulheres completas. Uma vez dentro do baile,
promovem-se com a maciez dos publicitários de sabão em pó. Vendem suas ideias
como artigos de primeira necessidade, solventes da impureza humana. Ora, um
escritor não pode vender desinfetante, considerando que é um negociante prático
da sujeira do mundo. Um homem que não alimentou os porcos com a própria carne
não pode dizer que conhece o chiqueiro.
Roubei uma quantidade admirável
de livros da biblioteca – mais tarde percebi o quão nefasto é assaltar uma
biblioteca, mas já era tarde. Roubava pra abater a mensalidade cara que meus
pais desembolsavam. Já que eu não fazia uso do sábio conhecimento descartável
dos professores, nada mais justo que compensar aumentando minha biblioteca
particular. Li pouquíssimo Jack London antes de roubar todos os dez exemplares
da obra do London disponíveis na biblioteca – não sei muito bem porque escolhi,
entre tantos livros, a obra do London sem nunca tê-lo lido. Atração magnética,
talvez. Uma vez concretizado o furto, li e reli apaixonadamente a obra do
grande mestre Jack London, esse que atravessou a América de carona nos velhos
trens e passou fome e mendigou e foi ao Alasca e lutou sozinho contra oito
piratas africanos e morreu empanturrado de uísque de péssima qualidade. Tive a
impressão, um tanto doentia, de que passara a conhecer aquele homem mais do que
a mim. Ou, pelo menos, os personagens de seus livros. Tratava-se da mesma
hipnose insustentável de imaginar-me encarnado em outra pele, outra vida – no
entanto, entre essa vida e a outra, apenas o limbo do desejo, das recordações
forjadas, urdidas em devaneios emborrachados. Tudo falso como uma nota de
trinta. Afinal, literatura não é isso? Não é a mentira dita de maneira sublime
a ponto de tornar-se verdadeira? Porquanto, satisfazia-me com a falsificação.
Inventar-se ou descobrir-se, dava na mesma, contanto que algo de novo pintasse
no front. É assim, intercalando falsificações, que se dá a invenção de cada homem.
Comigo não foi diferente.
Os homens da prateleira
adquiriram a importância do próprio Deus. De um Deus acessível que não sonhasse
dia e noite com bajulação. De um Deus bondoso cuja única vítima de sua invenção
fosse ele mesmo. Prisioneiro e carcereiro do mesmo sonho.
Só
encontrava verdadeiro prazer na leitura e na escrita – e na maconha, a divina
companheira. O resto era o intervalo entre as duas coisas. Não obstante, a
necessidade me levou ao trabalho, à disciplina. A necessidade me levou a
enxergar, insipidamente, cada banalidade e desgraça contida na vida como uma
dádiva comestível. A necessidade é o motor que move os homens para o
desconhecido. E lá estava eu, escrevendo duas mil palavras por dia por pura e
resoluta necessidade. Pela primeira vez, a dor e o lixo da vida me pareciam um
presente. Estava, também, disposto a romper com a dor e o lixo. Este rompimento
equivalia a reter em mim mais dor e mais lixo. Evoluir não é abandonar os
problemas, mas aperfeiçoá-los – com o máximo de estoicismo que nossos ombros
frágeis possam suportar. Não acreditava, e até hoje não acredito, que a coragem
tenha se manifestado em minha carne senão através da caneta e do papel.
Ela,
a literatura, era, de uma vez, o mundo, a vida, a beleza e o infortúnio. Era a
ilusão de ter a verdade em mãos, como um sabonete molhado e escorregadio,
cantando no chuveiro.
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