quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O primeiro impulso de um jovem escritor é o sofrimento. Sofrem quanto mais duvidam e se entregam a um mundo libertino endossado pela solidão. Sentem que estão à parte do mundo. Revoltados e solitários, buscam conforto na filosofia, na poesia, nos grandes romances, no quer que imite a vida a ponto de transformá-la. Aí, dá-se o confronto definitivo do jovem escritor com o mundo incompleto que é seu primeiro inimigo mortal. Em tudo, a solidão faz-se presente. Ela, a solidão, é o sol da madrugada.
O segundo impulso do jovem escritor é transportar-se para uma terra escura e risória, uma ilha de ilusão apartada do mundo tépido que o gerou. Funda a gênese da razão em terreno íngreme – num sopro, tudo pode desabar. Por outro lado, os grandes devaneios – estes que nos salvam do tédio ordinário da vida – tem por base os melhores alicerces, escorados que são pela essência divina que há no homem, em qualquer homem, de criar e gozar da criação. Assim o faz o jovem escritor. A fim de conceber uma realidade estritamente pessoal capaz de salvá-lo da ignorância e da solidão, ilude-se na tentativa de estancar a dor. O homem que se abstém de criar é uma criatura mutilada. O jovem escritor, egoísta como um anjo preterido por Deus, percebe, antes de tudo, que sofrimento e criação pertencem ao mesmo processo excruciante. Para depois da criação e do gozo, a morte. Antes da morte, tudo.
Naturalmente, as pessoas carregam a ânsia de contar suas histórias, não interessa o quão desinteressantes elas sejam. E quando elas começavam, é impossível fazê-las parar: nos cafés, nos bares, nas ruas, nos leitos de hospital, nos manicômios. Alguns entre milhares de psicopatas, motoristas, ex-presidentes, advogados falidos, por mais patéticos, descobrem-se escritores. Me parecem garotinhas recém-menstruadas: não se cansam de admirar o próprio sangue frouxo e acreditam que a partir daí tornaram-se mulheres completas. Uma vez dentro do baile, promovem-se com a maciez dos publicitários de sabão em pó. Vendem suas ideias como artigos de primeira necessidade, solventes da impureza humana. Ora, um escritor não pode vender desinfetante, considerando que é um negociante prático da sujeira do mundo. Um homem que não alimentou os porcos com a própria carne não pode dizer que conhece o chiqueiro.
Roubei uma quantidade admirável de livros da biblioteca – mais tarde percebi o quão nefasto é assaltar uma biblioteca, mas já era tarde. Roubava pra abater a mensalidade cara que meus pais desembolsavam. Já que eu não fazia uso do sábio conhecimento descartável dos professores, nada mais justo que compensar aumentando minha biblioteca particular. Li pouquíssimo Jack London antes de roubar todos os dez exemplares da obra do London disponíveis na biblioteca – não sei muito bem porque escolhi, entre tantos livros, a obra do London sem nunca tê-lo lido. Atração magnética, talvez. Uma vez concretizado o furto, li e reli apaixonadamente a obra do grande mestre Jack London, esse que atravessou a América de carona nos velhos trens e passou fome e mendigou e foi ao Alasca e lutou sozinho contra oito piratas africanos e morreu empanturrado de uísque de péssima qualidade. Tive a impressão, um tanto doentia, de que passara a conhecer aquele homem mais do que a mim. Ou, pelo menos, os personagens de seus livros. Tratava-se da mesma hipnose insustentável de imaginar-me encarnado em outra pele, outra vida – no entanto, entre essa vida e a outra, apenas o limbo do desejo, das recordações forjadas, urdidas em devaneios emborrachados. Tudo falso como uma nota de trinta. Afinal, literatura não é isso? Não é a mentira dita de maneira sublime a ponto de tornar-se verdadeira? Porquanto, satisfazia-me com a falsificação. Inventar-se ou descobrir-se, dava na mesma, contanto que algo de novo pintasse no front. É assim, intercalando falsificações, que se dá a invenção de cada homem. Comigo não foi diferente.
Os homens da prateleira adquiriram a importância do próprio Deus. De um Deus acessível que não sonhasse dia e noite com bajulação. De um Deus bondoso cuja única vítima de sua invenção fosse ele mesmo. Prisioneiro e carcereiro do mesmo sonho.
Só encontrava verdadeiro prazer na leitura e na escrita – e na maconha, a divina companheira. O resto era o intervalo entre as duas coisas. Não obstante, a necessidade me levou ao trabalho, à disciplina. A necessidade me levou a enxergar, insipidamente, cada banalidade e desgraça contida na vida como uma dádiva comestível. A necessidade é o motor que move os homens para o desconhecido. E lá estava eu, escrevendo duas mil palavras por dia por pura e resoluta necessidade. Pela primeira vez, a dor e o lixo da vida me pareciam um presente. Estava, também, disposto a romper com a dor e o lixo. Este rompimento equivalia a reter em mim mais dor e mais lixo. Evoluir não é abandonar os problemas, mas aperfeiçoá-los – com o máximo de estoicismo que nossos ombros frágeis possam suportar. Não acreditava, e até hoje não acredito, que a coragem tenha se manifestado em minha carne senão através da caneta e do papel.
Ela, a literatura, era, de uma vez, o mundo, a vida, a beleza e o infortúnio. Era a ilusão de ter a verdade em mãos, como um sabonete molhado e escorregadio, cantando no chuveiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário