domingo, 21 de agosto de 2016

Durante muito tempo tive uma única inspiração e toda minha vida foi um ensaio mesquinho e desesperado, uma fome, uma sede, sei lá, toda minha vida foi a tentativa fracassada de abandoná-la, ela, ela, a inspiração, ela, Natal – a cidade dos saqueadores, dos padres, dos cafajestes sem fé, dos maconheiros, das castas blindadas, do oceano infinito e dos aviões que voam com o combustível nas últimas e dos cavalos de aço que desfilam pela Av. Prudente de Morais. Vai, sim, me deixa ser franco: por que me atormentas, Natal? Por que me persegues como o espírito torpe da vítima persegue o assassino? Por acaso outros também não te mataram, outros também não fodem contigo e somem no dia seguinte? Gastei quatro relógios fugindo de tuas esquinas, Nova Amsterdã. Quatro  relógios me esquivando da paisagem. Becos e vielas de um passado faminto. Por um segundo, juguei que te havia superado. Ledo engano. Hoje, exilado, esqueci-me que te havia esquecido, e tomei carona na recordação de tua vasta cabeleira esparramada sobre as dunas de indiferença e calor. Sabe, Natal, penso que ainda há muita vida em ti. Vida em teus quadris esburacados. Vida em teus calvos morros de areia. Vida nos de meu sangue que há quatrocentos anos agonizam presos à correnteza do hálito marítimo. A promessa é de mais quatrocentos anos de amor, angustia e esquecimento. Oh, cidade fantasma, lancei ao mar meus sonhos de porcelana. O estômago do mar é um baú de sonhos e afogados. Cedo ou tarde, mandarei ao prelo o livro que te devo. O livro que prometi aos exus de tua última encruzilhada. O livro que me roubou quatro anos e uma dezena de amigos e um coleção de vícios. O livro que preciso para seguir em frente – seguir em frente, infelizmente, significa outro livro. O que são cem mil palavras na vida de um infeliz, me diz, doce senhora? Falta pouco. Mais um mês, y cambio de religión. Depois, Natal, te farei novamente realidade. Depois, depois...

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