sexta-feira, 29 de julho de 2016

Sorte de quem escreve o mesmo texto a vida inteira. O tempo é um funcionário público cuja repartição é o Caos. O tempo, diferente das amantes que somem no meio da noite, nunca sacou o batom rosa-choque e escreveu uma balada de despedida no espelho do banheiro. O tempo não sabe de cor nenhuma canção do Bob Dylan. O tempo nunca leu Os Irmãos Karamázov sentado no último banco do último ônibus Natal-João Pessoa. O tempo nos levou à cruz, mas também foi a mão invisível e pesada que nos trouxe ao mundo. Meia dúzia de milhões o chamam de Deus. Outros, em vão, tentam relativizá-lo. Semana passada, ganhei um aquário. Comprei três peixes e um mergulhador de plástico. Ah, se eu pudesse alimentar os peixes do aquário da sala com o tempo desperdiçado. Oh, se o mergulhador de plástico preso ao universo não definido do minúsculo aquário fosse capaz de uma poesia. Urge o envio de duas garrafas de cachaça via sedex para um velho amigo, uma de minhas setenta e sete promessas pendentes. Urge terminar o livro que há dois anos e cem mil palavras depois me persegue pelas esquinas. O livro que está nos lábios rachados das mulheres goianas. O livro que me acompanha à tarde, à noite, e à madrugada violenta ele bebe e fuma e canta como se o mundo fosse apenas ele e seu gosto musical. O Nordeste, vocês não sabem?, é um estado de espírito hipnotizante e brutal. Cada parágrafo de meu livro é um amigo esquecido. Cada capítulo é um amor sepultado numa geleira de sol e calor, fome e delírio. Pirangi, Cotovelo & Ponta Negra: essas são as putas que tentaram me afogar e fracassaram. Se há um bonde chamado desejo, há uma praia chamada desolação. O egoísmo, certamente, é o único vício do qual ainda não me recuperei. 


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