sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

De Ponta Negra à Redinha

Como uma mulher esparramada sobre a cama a espera do amante, assim é Natal. De Ponta Negra à Redinha, duas conduções e um entra-e-sai de biquínis, bêbados, ambulantes, crianças etc. Da janela, é nítido e até ridículo: pouca coisa mudou. Penso em minha avó, que viveu na Redinha nos anos 60 e que há vinte, trinta anos não faz esse caminho. Enclausurou-se em Parnamirim – e lá morrerá. Certamente, não reconheceria as ruas que deixou, não reconheceria o trapiche em ruínas da velha praia e acharia a ponte Newton Navarro uma extravagância visual.

De Ponta Negra à Redinha, parando na Ribeira apenas para alongar o caminho – desejoso que ando de todas as ruas que guardam um pouco de mim –, Natal parece ter se perdido dentro dela mesma. Durante os três anos e quatro meses que passei fora, fiz do Centro e da Ribeira o que de mais puro e impermisto havia em mim – como o cenário velho de uma peça que não sai de cartaz. Conheci cidades, conversei com o povo desconhecido dessas cidades desconhecidas, mas nada, absolutamente nada, me conduz ao passado como as ruínas abandonadas à morte da antiga Natal.

Descendo a Junqueira Aires, atual Câmara Cascudo, imagino quantas tardes meus bisavós, avós e pais suaram e sofreram enquanto atravessavam essa rua – Quantas, afinal, meu Deus? – Quantas vezes sob o mesmo sol invencível? – De frente para este oceano enraizado no horizonte – Bebendo a água do mesmo rio – Amando as mulheres da mesma raça – Todas as mulheres desta terra que são a mesma – No final das contas, acabaremos no Alecrim.

Em Ponta Negra, acolchoaram de pedras o calçadão. A erosão e a maré têm fome, uma fome inesgotável. À primeira vista, a engenhoca de pedras está funcionando. Ao meu lado, um casal de turistas. Pelo atropelo de Je Veux e J'aime e Merci e os biquinhos intermináveis e redondos, são franceses. Dois franceses pálidos em sua primeira noite em Ponta Negra. O rapazinho (vinte anos, se muito) agarra a namoradinha pela cintura e gasta com ela um bom verbo. A namoradinha, assim perdida de si, retribui o abraço com um beijo demorado ao luar. Só há beleza nos clichês para quem ama e é amado. Ah, se eu falasse francês... seria um idioma, não uma solução.

Na Redinha, um mulatinho de seus dez, onze anos, vende picolés. Grita no melhor potiguara aportuguesado sabores, preços e, entre um e outro, avisa que faz calor na terra. “Olha, olha, olha o picolé... Enfrente o sol com um picolé, meu boy... O sol é foda... Mas eu tenho picolé... picolé, meu boy...” Compro um de cajá e lhe deixo com o miúdo do troco. Agradece e continua sua marcha infantil de picolezeiro, pois o calor que combate é o mesmo que lhe põe de comer.

De Ponta Negra à Redinha, Natal é uma, duas, três, quatro cidades distintas. Onde começa a ilusão, termina a mentira. Enleado ao mar da Redinha, despeço-me de meus mortos. Saúdo-os como se fossem eles minha pátria, minha cidade, minha religião errática – saúdo-os porque sei que os mortos que aqui pereceram, cedo ou tarde, voltarão para nova vida em Natal. De frente para o mar, exilado em meu próprio chão, nunca um poeta e um verso me foi tão real quanto “O Natal na terra!” de Rimbaud. 

Para além das praias e dos montes, Rimbaud, excederemos os demônios, os tiranos e a superstição. Tuas vertigens continuarão fixadas, andarilho de Charleville, e teus silêncios e noites percorrerão em sonho a cidade do futuro solapada sobre as dunas movediças do passado.

Sento na areia quente da praia e me pego sem forças para continuar minha Natal Revisited – Natal que não é Lisboa, mas que “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.” Duas doses de cachaça são o suficiente para me restabelecer. Por via das dúvidas, desço três, porque é melhor remediar do que prevenir. Restabelecido, deixo que a paisagem me consuma. Meu espírito é nostálgico porque fraco. Meus erros andam tão fáceis de entender que acertar parece não fazer sentido. Fatidicamente, meu esgoto corre para o mar. 

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