Como uma mulher esparramada sobre a cama a espera do
amante, assim é Natal. De Ponta Negra à Redinha, duas conduções e um
entra-e-sai de biquínis, bêbados, ambulantes, crianças etc. Da janela, é nítido
e até ridículo: pouca coisa mudou. Penso em minha avó, que viveu na Redinha nos
anos 60 e que há vinte, trinta anos não faz esse caminho. Enclausurou-se em
Parnamirim – e lá morrerá. Certamente, não reconheceria as ruas que deixou, não
reconheceria o trapiche em ruínas da velha praia e acharia a ponte Newton
Navarro uma extravagância visual.
De Ponta Negra à Redinha, parando na Ribeira apenas para
alongar o caminho – desejoso que ando de todas as ruas que guardam um pouco de
mim –, Natal parece ter se perdido dentro dela mesma. Durante os três anos e quatro
meses que passei fora, fiz do Centro e da Ribeira o que de mais puro e
impermisto havia em mim – como o cenário velho de uma peça que não sai de
cartaz. Conheci cidades, conversei com o povo desconhecido dessas cidades
desconhecidas, mas nada, absolutamente nada, me conduz ao passado como as
ruínas abandonadas à morte da antiga Natal.
Descendo a Junqueira Aires, atual Câmara Cascudo, imagino
quantas tardes meus bisavós, avós e pais suaram e sofreram enquanto
atravessavam essa rua – Quantas, afinal, meu Deus? – Quantas vezes sob o mesmo
sol invencível? – De frente para este oceano enraizado no horizonte – Bebendo a
água do mesmo rio – Amando as mulheres da mesma raça – Todas as mulheres desta
terra que são a mesma – No final das contas, acabaremos no Alecrim.
Em Ponta Negra, acolchoaram de
pedras o calçadão. A erosão e a maré têm fome, uma fome inesgotável. À primeira
vista, a engenhoca de pedras está funcionando. Ao meu lado, um casal de
turistas. Pelo atropelo de Je Veux e J'aime e Merci e os biquinhos
intermináveis e redondos, são franceses. Dois franceses pálidos em sua primeira
noite em Ponta Negra. O rapazinho (vinte anos, se muito) agarra a namoradinha
pela cintura e gasta com ela um bom verbo. A namoradinha, assim perdida de si,
retribui o abraço com um beijo demorado ao luar. Só há beleza nos clichês para
quem ama e é amado. Ah, se eu falasse francês... seria um idioma, não uma
solução.
Na Redinha, um mulatinho de seus dez, onze anos, vende
picolés. Grita no melhor potiguara aportuguesado sabores, preços e, entre um e
outro, avisa que faz calor na terra. “Olha, olha, olha o picolé... Enfrente o
sol com um picolé, meu boy... O sol é foda... Mas eu tenho picolé... picolé,
meu boy...” Compro um de cajá e lhe deixo com o miúdo do troco. Agradece e continua
sua marcha infantil de picolezeiro, pois o calor que combate é o mesmo que lhe
põe de comer.
De Ponta Negra à Redinha, Natal é uma, duas, três, quatro
cidades distintas. Onde começa a ilusão, termina a mentira. Enleado ao mar da
Redinha, despeço-me de meus mortos. Saúdo-os como se fossem eles minha pátria,
minha cidade, minha religião errática – saúdo-os porque sei que os mortos que
aqui pereceram, cedo ou tarde, voltarão para nova vida em Natal. De frente para
o mar, exilado em meu próprio chão, nunca um poeta e um verso me foi tão real
quanto “O Natal na terra!” de Rimbaud.
Para além das praias e dos montes,
Rimbaud, excederemos os demônios, os tiranos e a superstição. Tuas vertigens
continuarão fixadas, andarilho de Charleville, e teus silêncios e noites
percorrerão em sonho a cidade do futuro solapada sobre as dunas movediças do
passado.
Sento na areia quente da praia e me pego sem forças para
continuar minha Natal Revisited – Natal
que não é Lisboa, mas que “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me
sinta.” Duas doses de cachaça são o suficiente para me restabelecer. Por via
das dúvidas, desço três, porque é melhor remediar do que prevenir. Restabelecido,
deixo que a paisagem me consuma. Meu espírito é nostálgico porque fraco. Meus
erros andam tão fáceis de entender que acertar parece não fazer sentido. Fatidicamente,
meu esgoto corre para o mar.
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