sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Noite de Ano

(LIVRO)
Escreva amanhã de manhã como se fosse a última vez, meu amor, ela cochicha. Beba, fume, coma, cante como se o mundo estivesse para morrer. Até porque hora ou outra um viaduto de impossibilidades desabará sobre nossas cabeças e você só se dará conta do atoleiro que se meteu quando for tarde demais, e é sempre tarde demais, eu tô cansada de saber disso. Tarde demais para que, eu pergunto, e ela responde Tarde demais para dar o fora de tudo, mas que se dane, hoje eu só quero relaxar e ver os fogos explodirem no céu, você sabe o quanto amo fogos de artifício, você sabe que eu me amarro em tudo quanto é artificial nesse mundo,  e estou para nascer hoje à noite uma vez mais, uma vez mais e não pela última vez.  

Ela ameaça chorar, porque quando bêbada ela arranja um motivo duro e impossível para chorar, e aí se debate, grita, e duas doses depois já está feliz e acesa novamente, mas dessa vez ela não chora, e nós nos sentamos no sofá branco rasgado de três anos de uso e fodas e sintonizamos Cartola como uma britadeira sacolejando as paredes do apartamento, e também para que as pessoas lá fora saibam que hoje estamos felizes, ou pelo menos que maquiamos um clima qualquer de felicidade – e as luzinhas de Natal ainda piscam amarradas a árvore de palitinhos e pano dourado que ela mesma confeccionou.

A champanhota vagabunda não chega para onde planejamos ir, e logo passamos para Vodka com Pepsi, torramos um quarto-zagueiro, daí para Vodka pura um pulo, e de Cartola para Elis Regina e de Elis para Bob Dylan, sempre ele, o mesmo Dylan que cantou Like a Rolling Stone também disse Leave your stepping stones behind, something calls for you, forget the dead you've left, they will not follow you. Que em tradução aleatória para o português vulgaris quer dizer Deixe suas pedras para trás, alguém o chama, esqueça os mortos que você abandonou, eles não o seguirão.

O mundo, ela me diz enquanto levanta o terceiro copo de Absolut, o mundo vive uma merda de decadência romântica, e o que as pessoas são em suas socialnetworks de araque é muito do piegas, chato, pedante, malcheiroso, e aí ligamos a TV para conferir o sorteio da mega-sena e definitivamente não estamos milionários. Rasgamos os bilhetes de loteria, atiramos o papel picado pela janela e ainda da nossa janela, nono andar, Rua 18, Centro de Goiânia, são dez e dez da noite e podemos ver um mar de gente pobre e calcinada rasgando a Araguaia em direção à Praça Cívica, onde o show de fogos acontecerá, e todas elas tão solitárias de si, gente desse solo arruinado do virtuoso Estado de Goiás, essa terra ondulada e louca que eu aprendi a amar – e é impossível não pensar que faltam apenas quinze dias para eu me mandar daqui.

Não é fácil abandonar três anos juntos vivendo sob o mesmo teto, dividindo a cama, a alucinação incoercível a par de todas as iguarias possíveis, a dor, o tédio, a dança e, claro, as contas. Não é fácil abandonar e por isso mesmo, por não se tratar de uma tarefa fácil, é que vale à pena. Bem, cresci numa casa de nordestinos pegajosos e nunca lidei verdadeiramente com a solidão. Quer dizer, sempre fui um solitário, mas nunca estive só. Agora, é uma questão de tempo. Basta sentar e esperar.

Descemos a Av. Araguaia, falta precisamente um minuto para o ano novo estourar na consciência das pessoas e os fogos de artificio pintarem o céu sem estrelas da capital do pequi, estamos abraçados, eu com uma garrafa escorregadia de espumante na mão e ela tentando ligar para os pais antes que o ano novo seja oficialmente decretado pelas autoridades do mundo, mas ela não consegue falar com os pais e a garrafa gela em minhas mãos, faltam agora alguns segundos, nos olhamos, nos beijamos, e vivemos a cena que ao longo da vida assistimos duas mil vezes repetida no cinema – o locutor do espetáculo puxa a contagem regressiva, dez, nove... cinco, quatro... três, dois, um... e o ano novo chega – ah, pobres dos que  tem consciência do fim ou do começo de qualquer coisa – a esses chamamos profetas e merecem todos, sem exceção, a fogueira, a guilhotina e por que não um caso de amor fracassado? Onde está o cotidiano, ela me pergunta, onde está o cotidiano a essa hora da vida para nos salvar do fim, amor?

Sim, meu bem, não pude e/ou consegui dizer antes, mas o faço agora: o cotidiano não existe, o que há é a inércia dos nossos sonhos ultrapassados, o convite para viver a vida que não planejamos – pois nenhuma vida é digna o suficiente para ser planejada. Improvisemos, meu amor, improvisemos como o comediante que esqueceu o fim da piada, improvisemos porque a vida é uma anedota velha, gasta, sem graça, improvisemos porque viver é essencialmente sofrer, e porra, uai! não foi você quem me apresentou toneladas de livros budistas e indianos e teorias do amor impermanente e tântrico e cósmico e a putaqueopariu na esperança de que a ressaca não nos encontrasse na manhã seguinte?

Dentro do taxi, rumo à festa de ano novo de um amigo em sua casa nova, quintal gigantesco, bebida e carne, e as mesmas velhas pessoas que abraçaremos como se fossem outras, Ana é só alegria, sorri baratinada para a cidade da janela do carro e eu me contorço todo de êxtase movido pelo álcool, pelo clima, situação, hora, data, local, tudo, e damos a mão enquanto o taxista toma o caminho mais longo e confuso – e o que seria de mim se não fosse enganado uma vez mais pela vida, agora condignamente representada pelo taxista em sua odisseia contínua com o taxímetro?

O taxímetro aponta trinta e quatro reais e já estamos no Jardim América, Viviane nos recebe, abraço Rodrigo e saco o charuto cubano Romeo y Julieta que comprei para ele, ele me dá uma caneca do Corinthians que aliás esqueci em sua casa após nove ou dez doses de vodka com energético, e sentamos na última mesa vaga da festa, em frente à churrasqueira comandada por um carioca amigo de Rodrigo que teve o pai fuzilado por cinco tiros de tauros na porta de casa, ele faz questão de dizer, cinco tiros de P.T., meu pai morto sem chance, e ele, o carioca comandante da churrasqueira, o filho do pai morto, esteve em Natal, sim, esteve e adorou a cidade e nunca viu coisa mais bela, assim são os turistas no buraco solar onde nasci, e ele me chama de Potiguar e eu me sinto verdadeiramente lisonjeado, afinal o Rio Grande do Norte é praticamente a capital do Brasil, e conversamos sobre a praia de Genipabu, dromedários e passeios de Bugre, e a vodka corre, corre solta em meu sangue coalhado, Ana reclama da areia molhada do quintal que manchou seu salto de camurça bege, minha família liga e eu choro e grito e xingo, falo com minhas três sobrinhas que ainda não sabem porra nenhuma da vida – e é por isso que as adoro, por não saberem porra nenhuma da vida –, falo com meu irmão mais novo que é como o filho que eu não quero ter, e a festa segue, segue com a banda de Rodrigo no palco armado no começo do alpendre gigantesco e eles executam sutilmente: “Se alguém por mim perguntar, diga que só vou voltar, depois que me encontrar.”

As coisas mudam de lugar, mas Cartola continua o mesmo. Cartola que aos cinquenta anos lavava carros em Ipanema. E aos cinquenta, meu amor, onde estaremos? Em quais ruas tristes e salgadas lavaremos nossos carros? Se disser que espero estar morto, minto. Não é de hoje que só digo mentiras a respeito da morte. No entanto, não interessa. Há sempre uma muleta ao alcance de todos e as minhas estão na prateleira, e hoje, primeiro de janeiro, minha muleta é Rimbaud, que longe de Deus pode anunciar: “Na imensa mansão de vidros ainda gotejantes, meninos de luto admiram imagens maravilhosas (...) Tudo é um tédio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa num pote de barro, não vai querer jamais nos contar tudo o que sabe, e que nós ignoramos.”

Em frente à churrasqueira, Ana e eu nos reconciliados com o mundo. Por um instante, ela lembra que eu estou indo embora e chora (o que, ultimamente, tem acontecido a cada dez minutos), balbucia como pode que me ama e chora novamente. A maquiagem que ela demorou meia hora em frente ao espelho bolando já foi para o beleléu. Escorre como água suja de seus olhos manchados. É esquisito pensar que se dormimos quinze noites separados ao longo de três anos, foi muito. Se passamos um único dia sem nos falar, foi demasiado. E agora planejamos a ausência total um do outro. Ela com nosso apartamento que será só seu. Eu com minha vida que agora será só minha – só minha até que Deus me anistie do compromisso de consciência e sofrimento e humildade tacanha que fantasio para mim.

O dia chega às sete da matina, estamos nós dois e mais cinco pessoas de uma festa de quarenta na última mesa de sobreviventes de vodka, uísque e cerveja quente, e Ana já cantou no improviso Ovelha Negra, Levava uma vida sosseeeeeegada, gostava de sombra e água frescaaaaaa, Meu Deus, quanto tempo eu passeeeeei sem saber,  e eu Tudo Outra Vez, Até parece que foi ontem minhaaaa mocidade, com diploma de sofrer de outra universidadeeeee, minha fala nordestina, quero esquecer o francês...

Dizer o que se pensa é uma arte fácil – ainda que não seja grande coisa. Basta falar instintivamente, utilizar-se das palavras como companhias indistintas a vontade e ao pensamento. Dizer o que se pensa é a arte do homem que não tem nada a perder – e se tivesse, de que adiantaria manter o que se tem em nome de uma falcatrua impossível?

Voltamos pra casa levados novamente por um taxista que prefere o caminho mais difícil. Ah, longe de mim me queixar dos caminhos que os outros escolhem em meu nome. Antes do banho, fodemos a primeira foda do ano que é sempre a melhor. Cansada, desaba ainda vestida na cama e esquece o chuveiro. Linda, irresistivelmente linda.

Me sinto revigorado e atônito da vida que me espera como uma cortesã mascarada – não me esqueço do banho e vou para ele com uma taça de vinho passado que encontro na geladeira. A água está fria. O sol já alto me lembra que há vida lá fora, vida desconhecida nas avenidas, ruas, becos, vida que continuará aconteça o que acontecer comigo, com Ana, com os amigos que há tempos não encontro e tão cedo não reencontrarei – inclusive convosco, leitor, inclusive convosco que é como um fantasma camuflado na luz evanescida do mundo. 

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