Durante muito tempo
tive uma única inspiração e toda minha vida foi um ensaio mesquinho e
desesperado, uma fome, uma sede, sei lá, toda minha vida foi a tentativa
fracassada de abandoná-la, ela, ela, a inspiração, ela, Natal – a cidade dos
saqueadores, dos padres, dos cafajestes sem fé, dos maconheiros, das
castas blindadas, do oceano infinito e dos aviões que voam com o combustível
nas últimas e dos cavalos de aço que desfilam pela Av. Prudente de Morais. Vai,
sim, me deixa ser franco: por que me atormentas, Natal? Por que me persegues
como o espírito torpe da vítima persegue o assassino? Por acaso outros também
não te mataram, outros também não fodem contigo e somem no dia seguinte? Gastei quatro relógios fugindo de tuas
esquinas, Nova Amsterdã. Quatro relógios me esquivando da paisagem. Becos e vielas de um passado faminto. Por um segundo, juguei que te havia superado. Ledo engano. Hoje,
exilado, esqueci-me que te havia esquecido, e tomei carona na recordação de tua vasta cabeleira esparramada sobre as dunas de indiferença e calor. Sabe, Natal, penso que ainda há
muita vida em ti. Vida em teus quadris esburacados. Vida em teus calvos morros
de areia. Vida nos de meu sangue que há quatrocentos anos agonizam presos à
correnteza do hálito marítimo. A promessa é de mais quatrocentos anos de
amor, angustia e esquecimento. Oh, cidade fantasma, lancei ao mar meus sonhos de porcelana. O estômago do mar é um baú de sonhos e afogados. Cedo ou tarde, mandarei ao prelo o
livro que te devo. O livro que prometi aos exus de tua última encruzilhada. O livro que me roubou quatro anos e uma dezena de amigos e um
coleção de vícios. O livro que preciso para seguir em frente – seguir em
frente, infelizmente, significa outro livro. O que são cem mil palavras na vida
de um infeliz, me diz, doce senhora? Falta pouco. Mais um mês, y cambio de
religión. Depois, Natal, te farei novamente realidade. Depois, depois...