Lá com
meus treze anos... estava pronto pra sair da prisão. Por “pronto” entendam
despreparado. E por “prisão” leiam a única forma de vida que eu conhecia. Como
uma história brasileira de liberdade, o colonizador seria o libertador.
Já
estava cheio, por aqui de crendices. Entalado. Não sentia em mim um simples
estalo de vida verdadeira. Apenas tédio, ilusão, superstições... Esturricado de
superstições. Obviamente, eu estava errado. Errado, sim, ao pensar que tudo o
que vivera até então não era vida, mas uma subvida, uma existência regateada. Indigesta
porque me enfiaram o alimento goela abaixo. De fato, a indigestão não era outra
coisa senão vida. O que fiz? Declarei guerra aos deuses de minha casa. Eu estava
enfadado. Cansado do Deus dos outros. Cansado de cantar a canção que escolheram pra mim. Toda minha existência me parecia uma grande farsa. Qualquer outro, um pouco mais imbecil, mergulharia ainda mais fundo no
rio de merda. Faria do desencanto uma dócil quimera. Do cão raivoso um
pequinês que ladra... mas não morde. Naquelas de tacar fogo no circo, eu disse: “Não acredito em
Deus. Que se foda, ele e o maldito Vaticano onde nasci.” No fundo, ainda
acreditava. Como não acreditar? A blasfêmia é a oração da desesperança - ainda assim, uma oração.
Todo domingo a família se reunia na casa de minha avó. O Deus deles ensinava que a família é uma entidade sagrada. Invariavelmente alguém dava um jeito de por Deus na conversa. Mezzo Nietzsche, mezzo Pedro de Lara, entre uma garfada ou outra de salpicão, eu atravessava: “Deus é
uma farsa, Deus é uma aberração.” Mas era da boca pra fora. Estupidamente, da
boca pra fora. Tentei,
a todo custo, crer na ideia de que Deus não passava de um pesadelo coletivo. Um pesadelo
dispendioso, inverossímil. Um pesadelo concebido numa noite escura de medo e ignorância.
A única maneira possível de não meter Deus no limiar dos acontecimentos seria
esquecê-lo. Evitá-lo. Mas como esquecê-lo, se marcava reunião lá em casa, no cômodo ao lado, com seus macaquinhos, terça, quinta e domingo? E como
desfazer-me dos macaquinhos se eu mesmo urrava, comia banana e coçava o cu como
um chimpanzé? Era impossível me desvencilhar da perdigueira de milagres... Das
duas mil horas de voo a cabo do sobrenatural. Deus, sim, esse me perseguiu. Não
porque tentasse me devolver ao rebanho, não por zelo de criador... Mas
por galhofa, fastio mesmo. Não sei. É provável que tivesse outros cinco bilhões
de pessoas aglutinadas no planeta sob sua supervisão. Gerente de um
empreendimento falido. Ou melhor: pensei, bastante convicto certo tempo, que
Deus inventara um sistema com vida própria capaz de mover as engrenagens do
mundo por si só. Autossuficiente. Que não precisasse de seu auxílio. Também
carecia, ora, O pobre general, O maestro inolvidável, de dias santos, pontos
facultativos, feriados religiosos... É provável que tenha dado vida à vida. Está pouco se
fodendo pro destino dos homens. Que os “filhotes” cresçam débeis e alucinados,
viciados em crack, caixas de supermercado, banqueiros, marxistas, fascistas,
nordestinos, gaúchos, pindamonhangabenses. Eles que façam o próprio destino. Que
modelem no vazio quixotesco da carne a felicidade e a miséria. A infelicidade e
a riqueza. Que aprendam a escrever no próprio idioma. Contudo, há uma mão invisível
acendendo e apagando as luzes. Apertando os torniquetes e decepando as cabeças.
Uma mão sem cor ou cheiro que construiu toda a matéria e luz num lance de
solidão. E a solidão é o presente dos que se atrevem a entender.
Pensando com meus botões... se houvesse criado o universo, da maconha ao salaminho, do maoísmo às
chicas paraguaias, faria igualzinho. Melhor: seria um
pouquinho mais egoísta. Seria, por sua vez, Grego, não Hebreu. Aristóteles, não
Moisés. Confundiria meu sangue com o sangue de belíssimas espécimes. Brancas Gordurosas,
Helenas de Tróia, Rainhas Egípcias, Índias Piauienses, Escravas Angolanas, Mulatas
do Salgueiro, Ninfetinhas do Youtube. Imaginação, creio, é um passatempo que
não faz mal a ninguém. Que dirá aos Deuses, que vivem disso.
Aos
onze anos, comecei a ler qualquer coisa que me caísse às mãos. O que pintasse
eu lia. Li Álbum de Família, Nelson Rodrigues. Saí maravilhado com a podridão
dos personagens. De queixo caído, roçando os calcanhares. Então é possível? Ser
fraco, vil, néscio, avacalhado, profundo, e ainda alcançar a verdade sem
culpa... Despreocupadamente? Escrevo a palavra “verdade” e quase tenho um
acesso de riso. Gargalho... Pronto, já foi. Contenho-me. Preciso continuar a
escrever. O que eu sabia de verdadeiro? Merda nenhuma. Não mais que um babuíno.
Muito embora me dispusesse em mentiras, invencionices, a verdade, já aquela época,
tinha um gostinho especial. Em outras palavras: a verdade era uma puta
inatingível, uma mulher que eu esperaria um tempo mais pra comer.
Ademais,
é um encontro inevitável. O homem babuíno com sua verdade. Se eu fugisse dela,
no final das contas, não encontraria outro monstro senão minha face descabelada
esculpida no espelho embaçado. Não encontraria outro monstro senão... eu.
Na
biblioteca do colégio – isso numa cidade estorricada, litorânea, Natal quente,
Natal de sunga – na biblioteca do colégio o mundo parecia feito de uma substância
em total diferente daquela que eu abandonava minutos antes de cruzar o corredor
lacônico, girar a maçaneta de prata da porta antiga imensa de madeira esculpida
com um cartaz escrito “Não faça barulho, grato. Ass: A direção”... Pra então encontrar
um paraíso silencioso e frio. Um paraíso de prateleiras. Longas mesas
envernizadas. Livros antigos com o carimbo do Gustavo Capanema, ministro do
Getúlio. A biblioteca era gigante, e quanto maior a biblioteca, mais despovoada.
Numa prateleira escura, tropecei em Gaia Ciência. Em três aulas cabuladas,
matei o volume. Conseguinte, O Anticristo e Zaratustra. Nietzsche me ensinou
muito. Tinha o que dizer. E disse, o que é mais importante do que apenas tê-lo
a dizer. Pus na cachola: só vale a pena se houver algo a ser dito. Eu não fazia
ideia do que dizer. No entanto, far-se-ia necessário abrir a boca. Empunhar a
pena bamba, escorregadia. Ser um escritor. Agir como um escritor. E o mais
importante: agir em silêncio como um escritor. O silêncio não era de todo ruim. Naturalmente, um livro me levou a outro.
Certa
vez, roubei um exemplar da poesia completa do Garcia Lorca enfiado dentro da
cueca. Ainda no pátio do colégio, enfureci-me de vida, êxtase, fascinado com os
saiotes que iam e viam movimentando anarquicamente as pernoquinhas luzidias. Lorca
em minha cabeçola tocando a dispneia do prazer. Na contracapa, dizia que era viado, maricon. Paris é uma festa:
talvez o punhal mais profundo daqueles dias de umidade bibliotecária. Paris,
Paris! O que havia naquela cidade que homem nenhum encontraria fora dela? Hemingway
disse: conte sua história. Sim, contarei minha história. Mas que história, se o
que tinha era uma história incompleta? Eu já era um escritor. Lia e escrevia
todos os dias. Arranjei um diário. Enchi o peito: “Quando a ânsia surgir em
mim, como um maremoto arrastando casas, sento e escrevo.” Sentar e escrever,
ponto. Não abri o jogo pra ninguém. Fiz-me de imbecil. Pra passar melhor,
claro. Escondi o tal diário debaixo da cama como se fosse uma magazine pornô. Quando
a tal ânsia surgia, que nem um espírito epilético ansioso por se comunicar, eu
sentava e mandava brasa. Inventava uma história sem pé nem cabeça. Deixava
minha impressão sobre as histórias de outros escritores, geralmente o que havia
lido pela manhã. Narrava, tão somente, o aspecto físico das pessoas que me
rodeavam, sobretudo as mulheres. Eternamente as mulheres. Em geral, era mais um
pintor do que um escritor. Descrevia o estado bruto das coisas, não as ideias.
Meu
discurso de garotão, então, uma colcha de retalhos. Recitava, imitava, plagiava os figurões que lia a ponto de sabê-los de cor – à noite, dormia com
o pensamento no que leria no dia seguinte... Pensando, também, numa história
inédita, uma história que nenhum outro homem jamais escreveu. Pus na cabeça...
meio zureta: Uma história original. Preciso de uma história original.
Exasperado,
entre a esperança e o torpor... Eu escrevia. Abandonava-me à insônia. Sentava
no chão frio. Apoiava o caderno na cama amarrotada. Em transe, escrevia uma,
duas, três horas. Por fim, relia o primeiro parágrafo. Achava tudo bastante descartável.
Uma bela bosta. Como quem dá aquela olhadinha de soslaio na merda que acaba de
soltar e puxa a descarga. Reler o primeiro parágrafo era o bastante. Rasgava o
que havia escrito e dormia em paz.
Cem mil elogios à loucura de um empreendimento como escrever e ao comentar digo apenas: maravilhoso. Ponto. Não sei ir muito além disso. Ponto. Incapacidade da língua. Sim os adjetivos exatos, o ritmo impecável como sempre, "pernoquinhas luzidias" um must nos lábios da mente, mas atenho-me ao que posso dizer como leitora distante e burra, - nunca escreverei algo assim - todos os leitores são burros? Não se pode participar do que já está pronto, mas sim, maravilhoso, mon amour, maravilhoso como todas as palavras que escorrem de seus dedos. Amo você.
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