quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A última luta de boxe da humanidade

Durante três ou quatro anos as lutas do Tyson foram uma religião lá em casa. Meu pai colocava o despertador pra apitar, levantava meia hora antes da luta e acordava meu irmão mais velho, João Maria. Meu irmão se incumbia de fazer o café e passar manteiga nas torradinhas duras e velhas, porque alguma coisa haveríamos de comer. Delicadamente, meu irmão mais velho me acordava. Era uma situação importante, que exigia sigilo e concentração. De tão eufórico, eu vencia o sono. Inegavelmente, Tyson faria o mesmo. Meu pai e meu irmão regurgitavam de ódio, torpor. Por amor a eles, eu também regurgitava de ódio, torpor.

A maior madrugada de todas fora a de junho de 97.

– Será que o Tyson consegue o cinturão de volta, pai? – João Maria perguntou.

– Mas é claro! Esse negão Hollywood não é o campeão de direito, porra. Vai ser preciso matar o Tyson pra ser o campeão de direito. Concorda comigo?

– Sim, pai, sim. Vai ser preciso matar o Tyson. – meu irmão concordou.

Só de sacanagem, meu pai chamava o Holyfield de Hollywood. Meu pai nunca gostou do Holyfield. Gostava, sim, do Tyson, que era todo talento e fúria. Gostava do Tyson que dizia o que precisava em apenas um round. Gostava do Tyson que era seco e rápido. Gostava do Tyson que não se fazia de Deus, nem se imaginava ungido por Deus a fim de realizar uma grande missão divina (como a maioria dos lutadores), muito embora meu pai fosse o “ungido”, fosse o cara da missão divina.

A luta começou e o Tyson mais parecia uma múmia. Apático, lento, desgovernado. Meu pai apostara um engradado de cerveja com não sei quem que o Tyson acabava a luta no primeiro round. O primeiro round se foi e o Tyson continuou parado, incapaz sequer de ultrapassar a linha de cintura. Meu pai e meu irmão fizeram cara de cu, embasbacados. Era um milagre às avessas. Um milagre do demônio contra as forças do bem, contra o Tyson. Holyfield acertou um direto na barriga do Tyson. Tyson avançou e caiu nos braços do Holyfield. Evander Holyfield, então, passou a desferir cabeçadas na testa do Tyson. O narrador da luta parecia, também, não acreditar no que estava narrando. Era como se Jesus Cristo retornasse à terra e acabasse mais uma vez derrotado na cruz, duvidando de si e do próprio pai.

– Eu já sei, eu já sei! – meu pai gritou. – O Tyson está a usar de uma estratégia arriscada. Ele vai cansar o Hollywood, que nem o Ali contra o Foreman, e depois vai acabar com a raça desse preto miserável. Feladaputa! Larga ele, Tyson, puta! Larga e come o queixo desse corno! Tá vendo como o Hollywood deixa o queixo exposto? Feladaputa! Não se faz isso contra o Mike Tyson, cara, não se faz.  

Mal meu pai fechou a boca, o grande Mike Tyson abocanhou a orelha do canalha Evander Holyfield. O sangue jorrou como de uma cascata. Tyson, transtornado, era um touro enfurecido num mundo vermelho e desordenado, não um homem. Um mar de gente invadiu o ringue. Curiosos, fãs, jornalistas, apostadores. Evander Holyfield parecia ofendido, e com certeza alguns milhões mais rico. Meu irmão e meu pai, pálidos, abriram a porta da cozinha e se recolheram ao quintal. Meu pai acendeu um cigarro e meu irmão bebeu o último gole de café da garrafa térmica. Eu estava com frio, muito frio, e não conseguia entender como meu pai, o grande médium, apostara no lutador errado. 

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