Durante
três ou quatro anos as lutas do Tyson foram uma religião lá em casa. Meu
pai colocava o despertador pra apitar, levantava meia hora antes da luta e
acordava meu irmão mais velho, João Maria. Meu irmão se incumbia de fazer o
café e passar manteiga nas torradinhas duras e velhas, porque alguma coisa
haveríamos de comer. Delicadamente, meu irmão mais velho me acordava. Era uma
situação importante, que exigia sigilo e concentração. De tão eufórico, eu
vencia o sono. Inegavelmente, Tyson faria o mesmo. Meu pai e meu irmão
regurgitavam de ódio, torpor. Por amor a eles, eu também regurgitava de ódio,
torpor.
A maior madrugada de todas fora a de junho de 97.
– Será que o Tyson consegue o cinturão de volta, pai?
– João Maria perguntou.
– Mas é claro! Esse negão Hollywood não é o campeão
de direito, porra. Vai ser preciso matar o Tyson pra ser o campeão de direito.
Concorda comigo?
– Sim, pai, sim. Vai ser preciso matar o Tyson. –
meu irmão concordou.
Só de sacanagem, meu pai chamava o Holyfield de
Hollywood. Meu pai nunca gostou do Holyfield. Gostava, sim, do Tyson, que era
todo talento e fúria. Gostava do Tyson que dizia o que precisava em apenas um
round. Gostava do Tyson que era seco e rápido. Gostava do Tyson que não se
fazia de Deus, nem se imaginava ungido por Deus a fim de realizar uma grande
missão divina (como a maioria dos lutadores), muito embora meu pai fosse o
“ungido”, fosse o cara da missão divina.
A luta começou e o Tyson mais parecia uma múmia.
Apático, lento, desgovernado. Meu pai apostara um engradado de cerveja com não
sei quem que o Tyson acabava a luta no primeiro round. O primeiro round se foi
e o Tyson continuou parado, incapaz sequer de ultrapassar a linha de cintura.
Meu pai e meu irmão fizeram cara de cu, embasbacados. Era um milagre às
avessas. Um milagre do demônio contra as forças do bem, contra o Tyson. Holyfield
acertou um direto na barriga do Tyson. Tyson avançou e caiu nos braços do
Holyfield. Evander Holyfield, então, passou a desferir cabeçadas na testa do
Tyson. O narrador da luta parecia, também, não acreditar no que estava
narrando. Era como se Jesus Cristo retornasse à terra e acabasse mais uma vez
derrotado na cruz, duvidando de si e do próprio pai.
– Eu já sei, eu já sei! – meu pai gritou. – O Tyson
está a usar de uma estratégia arriscada. Ele vai cansar o Hollywood, que nem o
Ali contra o Foreman, e depois vai acabar com a raça desse preto miserável.
Feladaputa! Larga ele, Tyson, puta! Larga e come o queixo desse corno! Tá vendo
como o Hollywood deixa o queixo exposto? Feladaputa! Não se faz isso contra o
Mike Tyson, cara, não se faz.
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