sábado, 29 de outubro de 2011

Daqui do alto

Visto do inferno, o céu é lindo. Debaixo da saia dela um larga camada de suor sabor perfume francês. Mal-me-queres e discos empilhados, aguçando a curiosidade. Como que sinfonias de lata, engraxates cheirando cola, apaixonando-se por cada garota de calça colada que passa em direção ao amontoado de lojas, som da água jorrando da fonte docilmente dançada pelos pombos, passarinhos chatos catando migalhas, ensaiando rasantes como um fulcker 100 louco bailando no céu verde do sertão.

Beijei-a. De pau duro, continuei sentado. Ela, sentada a guardar as sobras de uma trufa quente e machucada, linda. Levantamo-nos. Levou minha mão a sua buceta, empinou os pezinhos e então me beijou. Um dia no presente eu beijei o futuro. Não ela, que era o presente e o passado. Mas o futuro em seus lábios. Lábios atados e línguas pingando água gelada de uma garrafa de plástico que carregávamos. Retirando da garganta o açúcar grudado do algodão doce branco. Nuvens, ela dizia. Nuvens, sim, amor. Tudo o que quisermos em condições as mais loucas e menos deploráveis. Nuvens, sol, a chuva que se foi e veio de maneira imperceptível. Ela queria filmar um longa-preto-e-branco, Anna-Karina apontando o olhar perdido para o mesmo varal de lençóis do corredor do hotel. A megalomania que ela esconde atrás dos vestidos estampados e olhar de menininha. Passávamos fumando Marlboro em direção ao quarto. A dupla de amantes que se encontra e submerge em ritmo tênue, subindo e descendo escadas. Gosto de pensar que éramos uma dupla, que estávamos juntos porque assim o destino quis, e por um instante, ínfimo e imperceptível instante, esquecíamos-nos de nós em nome do amor, da junção das almas, esquecíamos-nos porque não interessava mais a individualidade, ser um não era o suficiente, e assim nos esquecíamos e éramos esquecidos.

O corredor da morte nos levava para a cama. Fodíamos, matávamos nosso filho no segundo andar do shopping, primeira loja à esquerda após as escadas rolantes. Fodíamos e fugíamos. Sem trocar a roupa de cama, claro. Achando graça no suor um do outro. Escovando os dentes ao mesmo tempo. Em minha cabeça saltavam notas de uma música trêmula e nova que eu parecia compor àquela hora - pura e diáfana ilusão. Com vodka ficaríamos melhor. Ao menos minhas mãos tremeriam menos. Mas não bebíamos. Repletos de medo do menor sinal de respiração dissonante, afundávamos na sobriedade. O pacto careta para vencer o mundo. Ou então decadência e elegância, e aí sim cairíamos/cairemos de cara na bebida. Valentes até a sétima dose e mais do que precavidos. Bonachões, por assim dizer.

Eu tento não ligar para a face dissoluta e rota do mundo. Cambada miserável, gente comum. Então enlaço sua mão a minha. Acho um modo seguro e desatento de caminhar na rua sem serenatas de Chopin na cabeça. Se é que Chopin compôs serenatas. Dessa vez prefiro Mozart. Esquivando-me da chatice e rachando os dentes ao som de Stones. Uma missão que me custaria a vida numa noite de domingo: suco de uva no supermercado. Tudo tão fácil que eu recolho as metáforas e sigo temeroso: a vida não é um filme com atores drogados, nem musicais da Broadway, nem livros chatos que nunca serão lidos. É preciso desconfiar, desconfiar sem descanso. Eu a amo. Leio meu horóscopo na banca de passagem e ele diz que preciso ‘tomar cuidado com as influências de Saturno no meu humor, sobretudo em fase de lua cheia’ e a porra toda. Eu digo que horóscopo é coisa de viado e caminho em direção ao hotel pensando em escrever um conto sobre quatro amigos que morrem no sertão após furarem o pneu do jipe. Anoto a idéia numa folha de caderno quando ela vai ao banheiro e decido que a idéia é uma merda, não serve. Amasso o papel e atiro no corredor que dá para a janela do quarto.

Acendo um cigarro assim que meto o corpo ao ar-livre. Sempre. Ela caminha distante. Que seja. Eu olho o céu distraído. Percebo que nunca caminhei assim na vida. Não daquele jeito. Liberdade bem no meio do pátio da prisão. Por mar ou por terra, fugir é o passatempo dos que decidem viver.

Pensando bem, literatura nunca levou ninguém a nada. Por isso é uma coisa boa de se abraçar. Morrendo verso em verso, qual um sambista da pesada, afundando em conhaques baratos, lotação cheia e uma porção de conhecidos usurpando o caminho de volta pra casa. Gente dispendiosa, mas gente necessária. Até certo ponto, claro, na melhor das hipóteses.

Dentro do avião, Natal parece a mesma massa disforme. Ruas intricadas, casarões arcaicos, prostitutas diurnas pegando sol. Alguns gringos dormem durante a madrugada. A fodança rola pela manhã. Toda a orla aberta. Fecho a janela do avião e abro um livro. O piloto tem problemas tentando pousar e dá meia volta. Vômito, Nossa Senhora, pânico. Fecho o livro, abro o jornal na página de esportes e finjo ler. Levanto as escotilhas e tento achar a minha casa. Sem sucesso. O avião sobrevoa ponta negra. Lá de baixo vejo a praia. Tento localizar cada ponto, cada bar, ambulante, quiosque. Sem sucesso. Pareço um estranho, voltando para morrer em sua terra natal. Natal. Até que não é uma cidade ruim para se morrer. No aeroporto tenho mais uma lição de partida. Bandeira na cabeça. Minha mais nova pieguice de bolso. Outra. Depois outra. A voz dela continua a mesma. Difícil acreditar, porém fácil de se prever. Peço um cigarro no lob do aeroporto. Fumo o Marlboro até o filtro quase e atiro o cigarro no chão. Uma senhorinha corcunda vem com uma pá, recolhe o cigarro a despeja a pá em um balde de lixo. Peço outro cigarro. Dessa vez a um cara meio pálido, escocês talvez. Fumo só até a metade e atiro o cigarro do outro lado da grade. Um segurança me olha desconfiado. Viro de costas e leio ‘proibido jogar lixo atrás da cerca/Mata densa, risco de incêndio’.

7 comentários:

  1. Pois, não direi mais nada...
    Sabe o quanto me toca a sua escrita.
    Beijoca e saudade!

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  2. tenho que comprar o livro desse proxeneta!

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  3. Sabe que você me inspira? Muito.
    Coisa de louco essa narrativa, André.
    Beijos :)

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  4. tchamo escritor! lindo de morrer. quero ler mais. entra no msn.

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  5. Vc continua escrevendo cada dai mais fodastico andrezinho. saudades saudades saudades de te ler falar com vc andar olhando o ceu.... call me djo!

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  6. Amor da minha vida. Meu escritor favorito. Eu te amo.

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  7. Parece uma dança, o ritmo (exceto uma quebra abrupta perto do fim) é quase que um reforço aos pensamentos tão 'paralelos', por falta de termo melhor. Um ritmo declamável (declamei, confesso). Passei a ter trechos favoritos e, mais uma vez, com uma escolha magnífica de palavras.

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