quarta-feira, 4 de janeiro de 2012






Meus dias foram trocados pelo olhar corriqueiro e intruso do
garoto. Cabelos desgrenhados, face turva, quase alva – impressão de que seu
rosto, eternamente pálido, repetindo o visual escasso do fotograma, tinha em
mente elucubrações além do milionésimo de segundo registrado: a inspiração de
dez vidas em um suspiro. Livre das vicissitudes, do mundo e dos velhotes
entediados digladiando-se como ratos a espera do queijo, fornicadores das
lembranças mundanas pintadas em leve retrato. Seus olhos são seus escritos, a fúria
transcende as pálpebras semicerradas ou os punhos fechados enfiados no bolso da
calça larga cor de vinho.
Infinita é a glória dos que sangram em sinal de
contentamento. A prole desgrenhou-se e o pulsar do coração pode ser ouvido à
medida que avança o submarino dos loucos. Penteando girassóis aquáticos que se
alinham conforme as ondas nadam em direção à praia.
Pode-se ver as montanhas, a relva após a passagem da chuva.
Sentado, imaginando cacos de vidro em sua alma dilacerante, bancando metáforas
e redenções como o santo louco – nunca canonizado, desconhecido e desprovido de
banalidades, escrituras sagradas ou seios pequeninos murchando dentro da boca
molhada. Imagino a nuvem de inquietação pairando sobre o fotógrafo. Um homem
culto, rico, barbudo, ex-caixeiro e amante de uma bela escandinava nos
arredores de Marselha.
O jovem não mirou a lente. Em seu pensamento desvairado de
quem despertou do sono pungente de mil anos em companhia dos mortos em eterno
regozijo, produzir imagens assemelha-se ao artífice do louco; àquele que sonha
penumbras enquanto os modernos,
pobretões de boa aparência e demônios em transe se atrelam ao encardido
de penumbras tolas e pesadelos esperançosos. Têm as recordações do passado à
saída para a quimera do futuro. Às histórias que de boca em boca ganharam a
ilusão inverossímil do que não pode ser mudado e é chamado cortesmente de
lembrança.
Verossímil, sim, é a verdade desgrenhada do garoto, poeta ou
maníaco. Sonha tufões e fabrica brisas dormentes. É preciso saltar a ribanceira
e ter os braços igualmente dormentes como asas. O pássaro dourado. A queda será seca, rápida; então a caminhada. Os
outros não trazem notícias de nenhum novo mundo.
Ele, que voou e agora anda, tem a difícil missão de recordar
a queda. Transferir a frieza para o papiro. O olor e a queimação eterna na boca
do estômago para o coração dos que se mantiveram alvos toda a vida, avaros para
a contestação da descoberta.
Mais difícil contestar o presente de elucubrações
dissonantes, passadas a fio como verdades inabaláveis do que contê-las em seu
âmago viril.
Poderia ele percorrer o espaço de mil fotografias com o
mesmo olhar¿ Ah, nunca conseguimos ou conseguiremos o mesmo olhar. Por mais que
se repita a pose. Nem ontem, hoje ou nunca! Fatigados, aprisionados no porão do
navio fétido, latinos de danças prodigiosas, bisbilhotando velharias através do
binoculo gigantesco. O binoculo aponta para o velho mundo. Onde os profetas
emitiram suas cartas de partida e chegada – o novo mundo ainda é desconhecido,
para sempre desconhecido. O novo mundo faz-se em sentir o futuro enquanto o
presente passa ao som do borbulhar da água que habita vulcões em ilhas
desertas; tinta negra e espessa contornando o papel finíssimo. Bibelôs de aço e
anjos de prata circundarão a lua, e o sol far-se-á calmo ou forte. O humor do
sol mudará ao ritmo da fome dos novos profetas.
O eclipse das almas ganhará forma, divindades apodrecidas e
cansadas da eternidade invejarão o sóbrio pensamento de quem nada pede. Será a
sabedoria a castidade enlameada em ódio¿
A ventania espancando faces e membros descobertos dissipará
a ambição.
E estes homens de uma estirpe já conhecida serão distintos
como a fotografia do jovem. Ou desiludidos como o homem entre seus pares na
África, o cinturão de ouro pesando-lhe o estômago, em pose passageira, olhando gravemente
para a câmera. Todos, inclusive os que não possuem a convicção de salvar-se em
terra ou cantar a desgraça com o sorriso aparente de quem a experiência de outros
mundos e enlevos alcança à voz: impetrarão o aposento das manhãs edulcoradas e
o paraíso será a passagem por rios e mares.

2 comentários:

  1. Sabe, diante de textos assim escutei coisas como "Nunca antes..." no propósito de elevar as palavras lidas a um patamar de singularidade. Isso não 'cabe no poema'. A singularidade não é feita pelo 'nunca' sim pelo que já foi. Foi-se meu poeta querido, tudo passou, passaram visões e mais visões acerca de Rimbaud. A consciência do olhar, do recorte, de que R. é o próprio 'singular'... é isso que distingue. É a nova perspectiva, é o uso intenso e penetrante das palavras (e que palavras!), olhar aqui é mais que olhar, torna-se poesia viva. Parabéns, a brevidade não cabe num comentário acerca do seu texto (Apesar de que muitas palavras também não seriam tão... tão? perto das que escolheu).

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