Goiânia Nordestina
Há uma ilha de afeto no peito do nordestino que parte. O corpo
do nordestino é um arquipélago azul. Ilhas que flutuam num oceano de luzes e
sangue. Sua memória, uma península de saudade. A maresia encrustada nos dentes.
O suor salgado que escorre em ondas. Mas há uma ilha de afeto no coração do
nordestino. A solidão é um náufrago e a ilha é seu reino. Reino de desolação.
Reino de antigas serestas que o tempo silenciou. Reino de morenas submersas e
ruivas flutuantes. Reino de um só homem e um só rei. O rei solidão não tem
herdeiros. O rei solidão mata a sede com água da chuva. Carrega o frio da noite
tatuado na pele descascada de sol. Quando bate a fome, uma criança cheia de
caprichos, a solidão a engana com estórias de um continente distante. A fome
simplesmente adormece e sonha acarajés, buchadas, tapiocas e lagostas aladas.
***
O nordestino é um personagem esmagado na paisagem colorida
de um pintor. Paralisado na moldura do tempo. Portinari ou Deus, tanto faz. O nordestino é um cubo mutilado de
Picasso. O nordestino é uma tormenta de Turner; uma mulata de DiCavalcanti e um
monstro aberração de Tarsila.
***
O poeta nos alertou e nós, os nordestinos, esquecemos: “O
Nordeste é uma ficção, o nordeste nunca houve.”
***
O nordestino que parte não é o mesmo que chega. A viagem,
por mais fuleira, exerce sobre o nordestino um fascínio quase infantil. A
euforia dos ingênuos. A estrada é a Disney do retirante. Frentistas como
Mickeys adormecidos. Um vira-lata de três pernas lembra o Pluto. O banco duro
do ônibus, uma grande montanha russa – escalando cordilheiras e no trotando no
espinhaço negro do asfalto. Não há
comida de mãe que chegue aos pés do PF, frio e sem sabor, do Bar do Marcão. A
paisagem sorri para o nordestino. A paisagem é um canastrão e a estrada é um
filme.
Onde termina a BR-101, começa a eternidade. Onde acaba a eternidade, começa o Sul do país.
***
Às vezes o nordeste e eu nos encontramos. É estranho encontrá-lo
assim de repente. Ele aparece no refrão de uma canção da Billy Holiday que toca
na casa de alguém. Aparece na música de uma palavra e no rótulo das cervejas.
Às vezes o nordeste é um garçom chamado Fábio. Mãos ágeis para fatiar a picanha
da churrascaria gaúcha. Fábio diz desse jeitinho “Meu sonho sempre foi
trabalhar com picanha, moço. Desde menino eu admiro picanha e hoje realizei o
sonho. É bom viver o sonho, né, moço?” Fabio nasceu em Imperatriz-MA, e lá
mesmo nunca topou um Imperador, um Príncipe Regente, um Sarney que fosse, nada;
Imperatriz-MA, acho, é uma cidade só de súditos.
Não creio que meu conterrâneo Fabio seja pobre de ambição.
Acontece que há certa nobreza e abundância de vida na simplicidade que
Imperadores, Coronéis e Sarneys embalsamados jamais entenderão.
***
A simplicidade é a própria lucidez. Não se chega à
liberdade, sem antes passar pela simplicidade. Há uma cerimônia de futilidade e
demência. A futilidade é um entorpecente perigoso. Demência é refresco. Mas há
drogados por toda parte. Eles querem coisas. Eles estão sempre atrás de algo.
Carros, iates, mulheres, nelores, iphones, empregos, banheiras, igrejas, doce
de leite, jornais, políticos, esperança, dentistas, promoções, múmias carbonizadas,
um cigarro picado à meia noite na última distribuidora do Setor Aeroporto e
heróis sem carisma. Eles estão loucos o suficiente para não sacar absolutamente
nada.
***
Neuza é baiana. Ela não se considera baiana. Mudou com a mãe
há trinta anos. O objetivo era Brasília, mas o destino quis Goiânia. O mundo
era outro, apesar de ser o mesmo. Neuza tem quarenta e cinco anos. Trabalha na
limpeza de um shopping. Neuza é aquela mulher que recolhe as bandejas e varre
os corredores. O sotaque baiano se perdeu ou foi esquecido. Neuza usa o
uniforme da equipe de limpeza. Um uniforme feito para torná-la invisível.
–João Nogueira tem uma musica chamada Neuza. É uma canção
muito bonita, Neuza.
– Não sou muito de música.
A noite se fez e Neuza ainda não viu a cor noite. O teto
cheio de coisas modernas do shopping impede que Neuza saiba que é noite.
– A gente passa tanto tempo aqui dentro, que quando vê, o
tempo passou e já é noite.
A noite é tão natural quanto o sotaque perdido de Neuza. Diferente
das liquidações, a noite é de verdade. É noite em Goiânia. É noite na Bahia
irrecuperável de Neuza. A noite é a mesma no Brasil, embora o Brasil não seja o
mesmo.
Beijo-lhe a mão. Neuza não está acostumada a ter a mão beijada.
Ela não sabe, mas beijar mão de baiana “chama a sorte”.
– Você é de onde?
– Natal.
– Então a partir de hoje beijar mão de natalino também é sorte. Posso?
– Por favor, Neuza.
Ela me beija a mão. Nos despedimos, cada qual com sua
fortuna e lá no fundo, ela sabe, e eu sei, que a noite se fez. A sorte nos
pegou de jeito.