(LIVRO)
Escreva amanhã
de manhã como se fosse a última vez, meu amor, ela cochicha. Beba, fume, coma, cante
como se o mundo estivesse para morrer. Até porque hora ou outra um viaduto de impossibilidades desabará sobre nossas cabeças e você só se dará conta do atoleiro que se meteu quando for tarde demais, e é sempre tarde demais, eu tô cansada de saber
disso. Tarde demais para que, eu pergunto, e ela responde Tarde demais para dar
o fora de tudo, mas que se dane, hoje eu só quero relaxar e ver os fogos
explodirem no céu, você sabe o quanto amo fogos de artifício, você sabe que eu
me amarro em tudo quanto é artificial nesse mundo, e estou para nascer hoje à noite uma vez
mais, uma vez mais e não pela última vez.
Ela ameaça
chorar, porque quando bêbada ela arranja um motivo duro e
impossível para chorar, e aí se debate, grita, e duas doses depois já está
feliz e acesa novamente, mas dessa vez ela não chora, e nós nos sentamos no
sofá branco rasgado de três anos de uso e fodas e sintonizamos Cartola como uma
britadeira sacolejando as paredes do apartamento, e também para que as pessoas
lá fora saibam que hoje estamos felizes, ou pelo menos que maquiamos um clima
qualquer de felicidade – e as luzinhas de Natal ainda piscam amarradas a árvore
de palitinhos e pano dourado que ela mesma confeccionou.
A champanhota
vagabunda não chega para onde planejamos ir, e logo passamos para Vodka com
Pepsi, torramos um quarto-zagueiro, daí para Vodka pura um pulo, e de Cartola
para Elis Regina e de Elis para Bob Dylan, sempre ele, o mesmo Dylan que cantou
Like a Rolling Stone também disse Leave your stepping stones behind, something calls
for you, forget the dead you've left, they will not follow you. Que em tradução aleatória para o português vulgaris quer dizer Deixe suas pedras para trás, alguém o
chama, esqueça os mortos que você abandonou, eles não o seguirão.
O mundo, ela me
diz enquanto levanta o terceiro copo de Absolut, o mundo vive uma merda de
decadência romântica, e o que as pessoas são em suas socialnetworks de araque é
muito do piegas, chato, pedante, malcheiroso, e aí ligamos a TV para conferir o
sorteio da mega-sena e definitivamente não estamos milionários. Rasgamos os
bilhetes de loteria, atiramos o papel picado pela janela e ainda da nossa
janela, nono andar, Rua 18, Centro de Goiânia, são dez e dez da noite e podemos
ver um mar de gente pobre e calcinada rasgando a Araguaia em direção à Praça
Cívica, onde o show de fogos acontecerá, e todas elas tão solitárias de si,
gente desse solo arruinado do virtuoso Estado de Goiás, essa terra ondulada e
louca que eu aprendi a amar – e é impossível não pensar que faltam apenas
quinze dias para eu me mandar daqui.
Não é fácil
abandonar três anos juntos vivendo sob o mesmo teto, dividindo a cama, a alucinação
incoercível a par de todas as iguarias possíveis, a dor, o tédio, a dança e,
claro, as contas. Não é fácil abandonar e por isso mesmo, por não se tratar de
uma tarefa fácil, é que vale à pena. Bem, cresci numa casa de nordestinos
pegajosos e nunca lidei verdadeiramente com a solidão. Quer dizer, sempre fui
um solitário, mas nunca estive só. Agora, é uma questão de tempo. Basta sentar
e esperar.
Descemos a Av. Araguaia,
falta precisamente um minuto para o ano novo estourar na consciência das
pessoas e os fogos de artificio pintarem o céu sem estrelas da capital do pequi,
estamos abraçados, eu com uma garrafa escorregadia de espumante na mão e ela
tentando ligar para os pais antes que o ano novo seja oficialmente decretado
pelas autoridades do mundo, mas ela não consegue falar com os pais e a garrafa
gela em minhas mãos, faltam agora alguns segundos, nos olhamos, nos beijamos, e
vivemos a cena que ao longo da vida assistimos duas mil vezes repetida no
cinema – o locutor do espetáculo puxa a contagem regressiva, dez, nove...
cinco, quatro... três, dois, um... e o ano novo chega – ah, pobres dos que tem consciência do fim ou do começo de
qualquer coisa – a esses chamamos profetas e merecem todos, sem exceção, a
fogueira, a guilhotina e por que não um caso de amor fracassado? Onde está o
cotidiano, ela me pergunta, onde está o cotidiano a essa hora da vida para nos
salvar do fim, amor?
Sim, meu bem, não
pude e/ou consegui dizer antes, mas o faço agora: o cotidiano não existe, o que
há é a inércia dos nossos sonhos ultrapassados, o convite para viver a vida que
não planejamos – pois nenhuma vida é digna o suficiente para ser planejada.
Improvisemos, meu amor, improvisemos como o comediante que esqueceu o fim da
piada, improvisemos porque a vida é uma anedota velha, gasta, sem graça,
improvisemos porque viver é essencialmente sofrer, e porra, uai! não foi você
quem me apresentou toneladas de livros budistas e indianos e teorias do amor impermanente
e tântrico e cósmico e a putaqueopariu na esperança de que a ressaca não nos
encontrasse na manhã seguinte?
Dentro do taxi,
rumo à festa de ano novo de um amigo em sua casa nova, quintal gigantesco,
bebida e carne, e as mesmas velhas pessoas que abraçaremos como se fossem
outras, Ana é só alegria, sorri baratinada para a cidade da janela do carro e
eu me contorço todo de êxtase movido pelo álcool, pelo clima, situação, hora,
data, local, tudo, e damos a mão enquanto o taxista toma o caminho mais longo e
confuso – e o que seria de mim se não fosse enganado uma vez mais pela vida,
agora condignamente representada pelo taxista em sua odisseia contínua com o
taxímetro?
O taxímetro
aponta trinta e quatro reais e já estamos no Jardim América, Viviane nos recebe, abraço Rodrigo e saco o charuto cubano
Romeo y Julieta que comprei para ele, ele me dá uma caneca do Corinthians que
aliás esqueci em sua casa após nove ou dez doses de vodka com energético, e
sentamos na última mesa vaga da festa, em frente à churrasqueira comandada por
um carioca amigo de Rodrigo que teve o pai fuzilado por cinco tiros de tauros
na porta de casa, ele faz questão de dizer, cinco tiros de P.T., meu pai morto
sem chance, e ele, o carioca comandante da churrasqueira, o filho do pai morto,
esteve em Natal, sim, esteve e adorou a cidade e nunca viu coisa mais bela,
assim são os turistas no buraco solar onde nasci, e ele me chama de Potiguar e
eu me sinto verdadeiramente lisonjeado, afinal o Rio Grande do Norte é
praticamente a capital do Brasil, e conversamos sobre a praia de Genipabu,
dromedários e passeios de Bugre, e a vodka corre, corre solta em meu sangue coalhado,
Ana reclama da areia molhada do quintal que manchou seu salto de camurça bege,
minha família liga e eu choro e grito e xingo, falo com minhas três sobrinhas
que ainda não sabem porra nenhuma da vida – e é por isso que as adoro, por não
saberem porra nenhuma da vida –, falo com meu irmão mais novo que é como o
filho que eu não quero ter, e a festa segue, segue com a banda de Rodrigo no palco
armado no começo do alpendre gigantesco e eles executam sutilmente: “Se alguém
por mim perguntar, diga que só vou voltar, depois que me encontrar.”
As coisas mudam
de lugar, mas Cartola continua o mesmo. Cartola que aos cinquenta anos lavava
carros em Ipanema. E aos cinquenta, meu amor, onde estaremos? Em quais ruas
tristes e salgadas lavaremos nossos carros? Se disser que espero estar morto,
minto. Não é de hoje que só digo mentiras a respeito da morte. No entanto, não
interessa. Há sempre uma muleta ao alcance de todos e as minhas estão na
prateleira, e hoje, primeiro de janeiro, minha muleta é Rimbaud, que longe de
Deus pode anunciar: “Na imensa mansão de vidros
ainda gotejantes, meninos de luto admiram imagens maravilhosas (...) Tudo é um
tédio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa num pote de barro, não vai
querer jamais nos contar tudo o que sabe, e que nós ignoramos.”
Em frente à
churrasqueira, Ana e eu nos reconciliados com o mundo. Por um instante, ela
lembra que eu estou indo embora e chora (o que, ultimamente, tem acontecido a
cada dez minutos), balbucia como pode que me ama e chora novamente. A maquiagem
que ela demorou meia hora em frente ao espelho bolando já foi para o beleléu. Escorre
como água suja de seus olhos manchados. É esquisito pensar que se dormimos
quinze noites separados ao longo de três anos, foi muito. Se passamos
um único dia sem nos falar, foi demasiado. E agora planejamos a ausência total
um do outro. Ela com nosso apartamento que será só seu. Eu com minha vida
que agora será só minha – só minha até que Deus me anistie do compromisso de
consciência e sofrimento e humildade tacanha que fantasio para mim.
O dia chega às
sete da matina, estamos nós dois e mais cinco pessoas de uma festa de quarenta
na última mesa de sobreviventes de vodka, uísque e cerveja quente, e Ana já
cantou no improviso Ovelha Negra, Levava
uma vida sosseeeeeegada, gostava de sombra e água frescaaaaaa, Meu Deus, quanto
tempo eu passeeeeei sem saber, e eu
Tudo Outra Vez, Até parece que foi ontem
minhaaaa mocidade, com diploma de sofrer de outra universidadeeeee, minha fala
nordestina, quero esquecer o francês...
Dizer o que se
pensa é uma arte fácil – ainda que não seja grande coisa. Basta falar
instintivamente, utilizar-se das palavras como companhias indistintas a vontade
e ao pensamento. Dizer o que se pensa é a arte do homem que não tem nada a
perder – e se tivesse, de que adiantaria manter o que se tem em nome de uma
falcatrua impossível?
Voltamos pra
casa levados novamente por um taxista que prefere o caminho mais difícil.
Ah, longe de mim me queixar dos caminhos que os outros escolhem em meu nome. Antes
do banho, fodemos a primeira foda do ano que é sempre a melhor. Cansada,
desaba ainda vestida na cama e esquece o chuveiro. Linda, irresistivelmente linda.
Me sinto
revigorado e atônito da vida que me espera como uma cortesã mascarada – não me
esqueço do banho e vou para ele com uma taça de vinho passado que encontro na
geladeira. A água está fria. O sol já alto me lembra que há vida lá fora, vida
desconhecida nas avenidas, ruas, becos, vida que continuará aconteça o que
acontecer comigo, com Ana, com os amigos que há tempos não encontro e tão cedo
não reencontrarei – inclusive convosco, leitor, inclusive convosco que é como
um fantasma camuflado na luz evanescida do mundo.