sábado, 7 de dezembro de 2013

O místico doce da morte



A noite perde a virgindade todos os dias. Sempre que o sol nasce como um grito encoleirado de dor... uma máscara inviolável de luz que a tudo cobre e abicha. Nuvens alaranjadas. Arranha-céus lambidos pela luz. Vira-latas mancos à cata do primeiro saco de lixo do dia. O sol é a lua sem charme... uma tangerina gigante... uma bola de futebol na marca do pênalti. São estúpidas as metáforas sobre o sol... rigorosamente, são estúpidas todas as metáforas. Como um bom estúpido, faço-as com gosto.

Todavia, antes do sol, a noite é virgem. Dentro da noite residem os animais velozes... os animais voadores.... os animais que me interessam... os trabalhadores estropiados e exaustos... os garçons de suor congelado... os alcoólatras paranoicos... os lixeiros maratonistas... os mendigos depauperados... as putas de calçada com suas pernas e seios a mostra... os lobisomens de sinaleiro... e uma porção de viciados fodidos e insanos. Não há paternidade, nem maternidade dentro da noite. Há, sim, um barulho de rádio ligado que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai. Há os carros que passam em disparada como relâmpagos na imaginação de um cego. A vida dentro da noite engatinha silenciosa e sufocada. Ninguém, nem por um minuto, arrisca dizer que um dia a noite acabará. O sol é um presságio, and no more.

Durante muito tempo... só escrevia à noite. Apoiado em xícaras de café, contando os cigarros como um fazendeiro conta suas vacas. Meus pais dormiam no quarto ao lado, e eu lhes ouvia a respiração agitada. No meu quarto, o batuque das teclas emperradas do computador e o assobio gelatinoso do mar. Raramente eu escrevia à máquina. O barulho da máquina despertava meu pai, que logo começava a tossir. Meu pai tinha – não sei se ainda tem – o sono leve e sensível. Quando o computador estava enguiçado, o que era quase sempre, algum problema fodido com o software ou hardware, eu escrevia à mão, o que era quase nunca. Detesto escrever à mão. Quando escrevo à mão o tempo parece um adversário, e não um aliado. A redação não acompanha o pensamento, o que é um problema seríssimo. Outros escritores já se queixaram disso.

Em Natal, Rio Grande do Norte, o sol nasce todos os dias pela primeira vez na América do Sul. Do lado de cá do Equador, ninguém vê o sol antes do Rio Grande do Norte. O barulho dos ônibus antes do nascer do dia é o sinal de que logo a vida cotidiana despertará para o monstruoso caos, o genuíno caos, o triunfante caos. O que acontece à noite não é o caos, mas o substrato do verdadeiro caos. O mundo está de pé. Os vendedores de picolé. Os padeiros. As caixas de supermercado. Meus pais, irmãos e vizinhos. Ouvia-os tomar café. Ouvia-os disputar uma vaga no banheiro. Ouvia-os defecar a primeira cagada da segunda-feira sun shine – e não sem prazer eu os ouvia voltar à vida. Lentamente, fechava a janela do quarto, ligava o ventilador Arno apoiado num tamborete de metal em frente à cama e... dormia. Estava contente por ter trabalhado duro a noite inteira. Apesar da fama de vagabundo, apesar da ideia de ser um vagabundo me excitar como nenhuma outra, não era assim que eu me via. Escrevia e escrevia. Relia o trabalho de uma noite inteira pouco antes de dormir. Ainda que eu não gostasse do resultado, meu corpo relaxava e eu podia, enfim, descansar.

O mundo lá fora só fazia sentido para mim se desabitado, ou mal e porcamente habitado. As ruas de meu bairro, pela manhã, se enchiam de carros estacionados. O entra e sai de carros me colocava paranoico, aluado mesmo. Se um único carro desfilando pela avenida é um consolo imaginário, uma centena deles é sinal de que a vida está inchada e podre. À noite, por outro lado, a rua me seduzia como um rato se deixa seduzir por um bueiro. Os lixeiros árabes com suas camisas plantadas na cabeça como burcas. Os travestis turbinados que, por segurança, só andam em bando. Os maconheiros magricelas em roupas de verão e bonés em busca de uma vitamina mais forte, engatinhando no mundo da cocaína.

Há gente de verdade nos antros de sofrimento, e uma incrível fonte de prazer e aprendizado quando se é um visitante nesses lugares sombrios e esquecidos.

Meu melhor amigo na infância chamava-se Fernão. Minha mãe e a mãe dele também eram amigas de infância, e davam aula juntas num colégio publico formador de aberrações. Eu sentia Fernão mais próximo de mim do que meus próprios irmãos. O que não me faltam são irmãos. Tenho sete. Dois do primeiro casamento de meu pai, e outros cinco entre meu santíssimo pai e diviníssima mãe. Nunca tive uma relação suficientemente intima e sincera com nenhum de meus irmãos. Nenhum deles nunca dividiu comigo as primeiras porradas da vida. Fernão, entretanto, me tinha no bolso. Salvara-me tantas vezes que se sentia à vontade em me sugar de todas as formas possíveis. Eu me sentia à vontade em ser sugado de todas as formas possíveis. Ele não tinha pai, e sua mãe, a tal amiga de minha mãe, não passava de uma puta viciada em machos etílicos e surras etílicas. Fernão é o que a sociedade moderna chama de “garoto transtornado”, criado sem pai, entregue às loucuras melodramáticas e à indiferença da mãe ninfomaníaca.  

Engendramos na maconha aos treze, quatorze. Quando demos o primeiro passo para cocaína, Fernão se empolgou. Achara a resposta de uma vida. O êxtase e a felicidade que lhes fora subtraído na infância. Diferente de Fernão, não me empolguei o suficiente. Completei um curto período de dependência, e só. Apenas um susto. Não tenho colhões o suficiente para me viciar, e se tenho, me falta dedicação.

Sempre me foi bastante claro o custo benefício da cocaína. Se cheirava duas, três horinhas – quarenta, cinquenta pilas de pó –, havia outras cinco, seis longas horas de exausta depressão. Sem contar a insônia que se iniciava à boca da madrugada e atravessava comigo o resto do dia. Isso desde a primeira vez que mandei um raiozinho. Não havia diversão o suficiente nessa porra para me fisgar. Se não fosse a depressão, é possível que caísse com gosto. Já Fernão estava tão acostumado com a merda que uma simples sessão depressiva não lhe fazia nem cócegas.

Foi nesse período que perdemos o contato diário. Ele arrumou uns parças narigudos do centro da cidade, e cheirava todas as noites, sem exceção. O problema da cocaína está no comportamento depressivo prolongado pós-ação, que é o meu caso, ou na falta de dinheiro, caso de Fernão. A falta de dinheiro é o maior dos toletes. Quando se cheira oito, noves noites seguidas, as próximas oito ou noves noites sem cocaína transformam-se num inferninho privativo e desempolgado. Fernão devia aquilo não ao vício, mas a si. Sem dinheiro, virava-se como podia. Lavava carros e assaltava os toca-fitas dos carros que lavava. Pastorava carros e metia os toca-fitas dos carros que pastorava. Ou só estourava o vidro de um carro qualquer e fugia com o toca-fitas. Especializou-se em toca-fitas. E havia, claro, a fonte clássica de dinheiro dos cacainômanos: a bolsa da mama.

Certa tarde, a mãe de Fernão apareceu lá em casa. Estava de short jeans, blusa cavada e descalça. Tinha uma enorme mancha roxa na bochecha. Transtornada, atirou-se nos braços de minha mãe e chorou como uma garotinha. Minha mãe chorou junto. As duas pareciam amigas, amigas de verdade. Encostei a orelha e ouvi como pude o que elas conversavam. Fernão, óbvio, atacou a mãe. Roubou-lhe o salário do mês. Minha mãe chamou meu pai, que estava na cozinha, torrando o saco trabalhador de cachaça. Meu pai fez um cheque e a mãe de Fernão recuperou-se como se tocada por Cristo. Dinheiro emprestado tem esse poder nas pessoas. Ainda mais quando elas sabem que não precisam saldar o empréstimo tão cedo.

Passamos a andar em grupos diferentes. Fernão pertencia à patota viciada, aos “quebra-nozes”, como eram conhecidos os nariguebas sem um puto. Eu frequentava os maconheiros do centrão, “jamaicoboys”, como nós (eles) erámos chamados. Nunca tive lá grande sentimento corporativista, muito menos quando se trata de maco-clubismo. Mas andar com os jamaicoboys facilitava a vida de qualquer maconheiro. É fumo que não acaba mais. De todas as qualidades e sabores. Maconha se reparte. Se um está sem maconha, o outro cobre. Se o outro tá em baixa, o um cobre. Maconha se divide. Maconha é a mais Franciscana de todas as drogas. Os maconheiros nutrem aquilo que chamo de bequi-da-compaixão. Ao passo que com a cocaína não acontece da mesma forma, nem poderia. Aquela porra custa uma nota e quanto mais se tem, mais se quer. Não há ponto de estafa na cocaína – e se há, é um ponto demasiado alto e perigoso para que se consiga vivê-lo.

Fernão não podia mais voltar para casa. Se voltasse, o atual comedor da mama, um PM aposentado fã de um uisquinho, foder-lhe-ia no tabefe. Sem contar que a mãe lhe queria pelas costas. Foi morar na Praça André de Albuquerque, a Woodstock a céu aberto dos junkies natalenses. Juntou-se a crème de la créme dos viciados entregues à miséria.

Certa noite, Fernão apareceu lá em casa. Quando o interfone tocou, eram três da madruga. Eu trabalhava naquilo que seria meu segundo livro, um romance perdido num HD queimado. Um livro em primeira pessoa que narrava a vida de um cara criado dentro de um cabaré. Criado pelas putas, assim como Mogli fora criado pelos ursos, ou lobos, vai se saber. Havia acabado de lançar meu primeiro livro, O Oxum da rua de trás, um livro de contos, e me julgava, sem sacanagem, um grande escritor. Eu era um pobre-diabo, mas essa informação ainda me era desconhecida. Morava com meus pais, tinha dezessete anos e já um livro. Imaginava-me Rimbaud, para dizer o mínimo. Estava com o cu cheio de grana. Cheio de grana que eu digo são dois mil, dois mil e quinhentos reais. Uma graninha nada mal para quem tem dezessete anos e está a vinte minutos da orla mais cara do litoral Nordestino.

Desci ao encontro de Fernão. Ele estava na calçada. Pés e mãos enferrujadas. Não tomava um banho há dias. O cabelo parecia um capacete, de tão duro e impermeável. Fernão sorriu, como se tivesse numa boa. Sorri de volta. Abriu os braços e lançou-me a possibilidade de um abraço. Foda-se, eu pensei, se não abraçá-lo agora o sujo sou eu. Abraçamo-nos. Perguntou como eu estava. Respondi que estava muito bem, obrigado. Escrevendo como nunca. Por falar nisso, tenho umas histórias que você poderia escrever, ele retrucou. Aposto que sim, eu falei, e perguntei como ele estava, como se não soubesse o tipo de merda que ele estava passando. Respondeu com um sorriso, timidamente. Disse estar com pressa. Uma pressa fodida. Pediu-me cem reais. Precisava pagar um trafica. O trafica chamava-se Olho Seco. Olho Seco era um pé-de-chinelo, mas um chinelo perigoso. Há traficantes que só trabalham com a high. Passam para os playbas e vivem de carrão topeteando na zona litorânea. Há, por outro lado, os traficas do centro, que circundam as sombras da madrugada e são como macacos de galho em galho, rua em rua, avenida em avenida. Olho Seco era desses. Olho Seco nasceu com apenas um olho, daí o apelido. Fernão sorria. Esplendorosamente sorria. Um riso cínico, desinteressado. Parecia alheio ao mundo e ao vento frio que soprava do mar, o que naturalmente não passava de uma grandessíssima simulação. Sorri de volta. Sorri e menti. Disse que não, não tenho um puto, Fernão. Pensei que se arranjasse o dinheiro agora, ele viria amanhã, e depois, e depois. Não importaria quantos nãos eu lhe desse, ele continuaria vindo. Os viciados em cocaína tem pouquíssima imaginação e memória curtíssima. Esquecem ou inventam seus problemas ao bel prazer.

Não, foi minha resposta. Fernão sabia que eu estava mentindo. Repetiu o pedido, como se um novo pedido demovesse-me da ideia. Respondi que... Se eu tivesse, brother, estaria em suas mãos, você sabe. Ele não acreditou, mas continuou sorrindo. Despedimo-nos com um aperto de mão. Daqueles que terminam em soquinho. Deu as costas e desapareceu dentro do barulho neurótico que faz o vento do Atlântico nas costelas dos prédios descascados da grande cidade de Natal.


***


Fernão e eu tínhamos um leva de amigos em comuns. Entre eles, Derico. Derico tinha esse apelido porque era careca e sustentava um rabo-de-cavalo ridículo da nuca até quase a bunda. Parecia o Derico, saxofonista do programa do Jô. Apareceu lá em casa como se de posse de uma grande novidade. Havia um morto estendido no calçadão da Praia do Meio.

– Adivinha quem é?

Como assim, eu perguntei.

– Fernão, porra. Todo furado de faca. Dizem que os caras passaram o coitado por uma merreca de trinta pilas.

Foi uma questão de tempo até a mãe de Fernão pintar lá em casa. Queria dinheiro para o funeral. Parecia ainda menos chocada que da última vez. Pelo contrário, estava até aliviada. Mas precisava do dinheiro, então fez uma ceninha rápida, conseguiu outro cheque e picou a mula.

Derico sentou-se em minha cama, apoiou o violão na perna e tirou um solinho estúpido do Pink Floyd que ele estava treinando. Time, se não me engano. Tinha uma banda, como a maioria dos retardados maconheiros de minha laia. Enquanto solava, descreveu o corpo de Fernão:

– Disseram que o estômago dele tava todo na calçada, acredita, bicho? E o cadáver todo cagado. Eu queria saber só se ele cagou antes ou depois das facadas.

Eu não estava surpreso. Estava, sim, um pouco tonto. Anestesiado com a ideia. A morte ainda não me era familiar. Derico, pelo contrário, parecia tranquilo com a presença da morte. Tranquilo ao ponto de reclamar da primeira corda desafinada do violão. Ou simplesmente estivesse cagando e andando, o que era bem possível.

Minha mãe veio me ver. Abraçou-me. Chorou tentando imaginar a dor da amiga em si. A dor oca de perder um filho. Enxugou as lágrimas com as costas enrugadas da mão e perguntou se eu não queria um terno de meu pai, um daqueles pretos com listras, e quem sabe uma gravata vermelha, sugeriu.

– Pode ser, respondi.

Derico disse que não iria ao enterro. Não tinha roupa para esse tipo de ocasião importante, e nem de cemitério gostava. E havia ensaio da banda. Estúdio novo, sabecomé, batera novo, um mundo de novidades entra dia sai dia, é foda. Guardou o violão e conferiu o relógio... estava na hora. Atravessara a cidade apenas para me dar a notícia... apenas. Lamentou-se, sabia que Fernão e eu éramos próximos, quase irmãos. Usou exatamente essas palavras... "quase irmãos".  

– Ah, continuou, você não tem um pedacinho aí que me salve? Tô de baixa, bicho. Ensaiar de cara é mau, né?

Fui até a última gaveta da escrivaninha, dei-lhe um pedaço de maconha, cheirou o fumo, seus olhos incharam de felicidade e guardou a rapadura prensada dentro da cueca. Deu no pé, sem cerimônia.


***


Não houve velório. O cheque de meu pai chegou para o enterro e mais nada. O enterro aconteceu às dez da matina do dia seguinte, debaixo de um solzão tórrido. A mãe e o padrasto estavam de óculos escuros, um pouco enfadados, apoiados numa lápide escura de mármore. Não mais que vinte, trinta pessoas... igualmente enfadadas. Entre eles, minha mãe e eu.

Uma velha gorda e suada, não sei se parente ou conhecida da família, ameaçou desmaiar e foi levada às pressas até o banco traseiro de um Fiat Uno azul estacionado a poucos metros da sepultura. Minha mãe e eu cumprimentamos a mãe de Fernão, que sacou os óculos e os pendurou no decote da blusa negra. As pessoas não usam óculos para esconder a dor, mas a falta dela. Perguntou-me a idade. Embasbacado, não respondi. Minha mãe respondeu por mim: 


– Dezessete. 
– Uma criança, meu Deus, uma criança... igualzinho meu Fernão.

O caixão desceu. As pessoas bateram palmas. Os coveiros lacraram a cova com cimento. As pessoas fugiram atazanadas do sol. Já não havia mais caixão. 


Minha mãe chamou um táxi. Enquanto esperávamos o táxi à entrada do cemitério, alisou-me os cabelos com seus dedos finos e pontiagudos e disse o quanto o tempo passa depressa, que a vida é hoje e não é amanhã, que Deus há de ser bondoso com Fernão, meu Deus, há de ser, há de ser, e disse também que nada acontece por acaso. Estava contente em não ser ela a mãe a chorar o filho morto. Obviamente, eu também estava contente em não ser o filho morto.

– É sempre bom tomar um banho depois de ir ao cemitério, André – advertiu-me.

Sentei no banco da frente. O taxista perguntou para onde. Minha mãe lhe passou o endereço e o taxista retrucou se havia algum caminho de nossa preferência, uma avenida, um bairro, pelo viaduto ou pela orla, senhora? Minha mãe respondeu não importa, o senhor que sabe, e o taxista escolheu o caminho mais longo e engarrafado possível.